Sistema de unidades de conservação desprotegidas - Projeto ManuelzãoProjeto Manuelzão

Sistema de unidades de conservação desprotegidas

02/02/2024

Mesmo resguardados por lei, santuários de preservação da fauna e flora e dos recursos e serviços hidrológicos estão sob ameaça constante de perder terreno para a mineração

[Reportagem de Ferdinando Silva e José Pedro Ferreira publicada nas páginas 10, 11, 12 e 13 da Revista Manuelzão 94, na editoria Enfrentamentos; republicamos aqui com algumas edições para adaptar o texto ao formato do site. Acesse a edição 94 e as edições anteriores da Revista Manuelzão através deste link.]

Uma rede de áreas de proteção da biodiversidade e de funções ambientais primordiais como a recarga de aquíferos e a produção de água para as bacias hidrográficas: a definição de um sistema de unidades de conservação a nível municipal, estadual e federal passa invariavelmente por estes e outros termos próximos. Em Minas Gerais, contudo, é cada vez mais forte a percepção de uma rede às avessas, em que territórios-chave para a manutenção da vida são ubiquamente encurralados e corroídos, promovendo a conectividade não de benefícios ambientais, mas de destruição e riscos extensivos.

Na região do Quadrilátero Ferrífero-Aquífero, porção sul da Cordilheira do Espinhaço onde são formados alguns dos principais cursos d’água do estado, a situação chega ao paroxismo. Seja pelo avanço da mineração, por barganhas perniciosas, falta de compromisso de políticos e gestores, entre outros conflitos, unidades de conservação atualmente perdem não só suas zonas do entorno, mas mesmo porções dentro dos limites protegidos.

Grosso modo, o Quadrilátero é definido, em sua borda sul, pelas serras de Ouro Branco e Ouro Preto; na borda leste, pelas serras do Gandarela e do Caraça; na oeste, pela Serra da Moeda; e na norte, pelas serras do Rola-Moça, do Curral e da Piedade, na Grande BH. A Serra do Espinhaço na região de Itabira forma uma espécie de apêndice, a noroeste. Analisando o contexto entrincheirado de alguns desses imponentes marcadores geológicos, o cenário é alarmante.

Parque Nacional da Serra do Gandarela

Criado por decreto presidencial em 13 de outubro de 2014, o Parque Nacional (Parna) da Serra do Gandarela já nasceu maculado pelo interesse da Vale na área. Para surpresa dos diversos atores que se mobilizavam há anos pela criação da unidade de conservação, os limites decretados deixaram de fora o trecho mais significativo da Serra do Gandarela. É nessa porção que a mineradora tenta, desde 2009, instalar o Projeto Apolo, sua maior empreitada desde o Complexo dos Carajás, no Pará.

O Parna Gandarela cobre uma extensa área de 31.270 hectares, abrangendo parte do território de Raposos, Caeté, Santa Bárbara, Mariana, Ouro Preto, Itabirito, Rio Acima e Nova Lima. O objetivo de sua criação é “garantir a preservação de amostras do patrimônio biológico, geológico, espeleológico e hidrológico associado às formações de canga do Quadrilátero Ferrífero, incluindo os campos rupestres e os remanescentes de floresta semidecidual, as áreas de recarga de aquíferos e o conjunto cênico constituído por serras, platôs, vegetação natural, rios e cachoeiras”.

As cangas ferruginosas são uma camada superficial do solo, muito dura, mas porosa, fundamental para a proteção e recarga dos aquíferos. No Quadrilátero, a Formação Cauê, associada às cangas, é a camada profunda que mais armazena água e que é precisamente o minério de ferro. Sob o Gandarela, está a principal caixa d’água subterrânea da região, que abastece as bacias do Rio das Velhas, em uma vertente, e do Rio Piracicaba, na outra. Tal fato se deve não apenas à singularidade geológica do Gandarela, mas também por ser a serra menos impactada por minas de ferro e ouro.

Além da Vale retomar em 2021 as tentativas de licenciar o Projeto Apolo, que prevê a exploração de 400 milhões de toneladas de minério de ferro em 29 anos, o Parna da Serra do Gandarela já sofre, neste momento, com a devastação promovida pela mineradora Nossa Senhora do Sion. Sua Mina do Lopes está a impressionantes 100 metros dos limites do Parque, e a cerca de 500 metros da Paleotoca do Gandarela, uma caverna escavada por preguiças-gigantes há 10 mil anos [contamos essa história na Revista Manuelzão 92].

A nível federal, a permissão para o licenciamento de uma lavra de minério vizinha ao Parque foi dada no fim do governo Bolsonaro. Em Minas, foi carimbada entre 2021 e 2022 por Rodrigo Ribas, chefe da Superintendência de Projetos Prioritários da Secretaria de Estado do Meio Ambiente (Semad), mesmo com duas ações civis públicas sobre o tema ajuizadas pelo Ministério Público de Minas Gerais (MPMG). Entidades como o Movimento pelas Serras e Águas de Minas (MovSAM) apontam que a pequena Mina do Lopes, na divisa com a cava prevista no Projeto Apolo, serve na verdade para abrir caminho para a titã do setor.

Monumento Natural Estadual da Serra da Moeda

A Serra da Moeda estende-se por 70 quilômetros e engloba porções de Itabirito, Ouro Preto, Belo Vale, Brumadinho, Nova Lima, além do município de mesmo nome. Para assegurar a proteção das porções ainda não predadas pela mineração, foi criado em 2010
o Monumento Natural Estadual (Monae) da Serra da Moeda, com 2.372 hectares, na divisa entre Itabirito e Moeda. Novamente, a própria criação da unidade de conservação revela um campo minado, sendo fruto de uma medida compensatória imposta à siderúrgica Gerdau pela extração ilegal na Mina Várzea do Lopes, colada à área.

Entre os objetivos da unidade de conservação estão a proteção de 85 nascentes nascentes em seu interior e de, pelo menos, outras 78 no seu entorno; a proteção de mais de uma dezena de cavernas, duas delas de máxima relevância; a promoção da conectividade biológica e hidrológica; e a formação de um corredor com sua vizinha Estação Ecológica Estadual de Arêdes. Apenas da fauna, são quase 300 espécies protegidas, com destaque para as 209 espécies de aves, entre elas as endêmicas beija-flor-de-gravata-verde e canário-rabudo.

A principal ameaça ao Monae Moeda é resultante do lobby da Gerdau na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG). Nos últimos 4 anos, três projetos de lei tentaram entregar à siderúrgica 12,8 hectares da unidade para a expansão da Mina Várzea do Lopes. A estratégia foi sempre a mesma: alardear o aumento de 62,65 hectares da área protegida, uma vez que em troca do trecho visado pela Gerdau seria incorporado outro de 75,46 hectares. A permuta, contudo, é de áreas de baixo valor ambiental por topo de morro, Área de Preservação Permanente (APP) pelo Código Florestal brasileiro, nesse caso de extrema relevância para a recarga hídrica das bacias dos rios Paraopeba e das Velhas.

Os autores dos projetos foram os deputados Antonio Carlos Arantes (PL) e Thiago Cotta (PDT), o último tentando a façanha por duas vezes. Na segunda delas, Cotta procurou camuflar a proposta em um projeto de lei sobre apreensão de veículos durante a pandemia.

Atualmente tramita na ALMG uma quarta proposta, de autoria do deputado Noraldino Júnior (PSB). Diferente das anteriores, o PL 1.185/2023 propõe apenas a incorporação de 62,65 hectares, sem que haja a desafetação dos 12,8 hectares visados pela Gerdau. Levando em conta o cenário recente, 26 organizações da sociedade civil oficiaram o deputado pedindo que o PL seja retirado de tramitação. Elas apontam a possibilidade de que emendas alterem a versão inicial do projeto de modo a favorecer a atividade minerária.

A exploração Mina Várzea do Lopes já nasceu ilegal, sem o licenciamento ambiental. Após acordos judiciais firmados com o MPMG e o Estado de Minas, a Gerdau passou a descumprir a condição de não solicitar mais licenças para operar na região. Em 2017, a mineração chegou a invadir os limites da unidade de conservação, o que foi confirmado pelo Instituto Estadual de Florestas (IEF).

Estação Ecológica Estadual de Arêdes

A fórmula do lobby testada com a Serra da Moeda está mais próxima de dar certo com a Estação Ecológica Estadual de Arêdes, a 5 quilômetros de distância uma da outra. Criada em 2010 em Itabirito, a cerca de uma hora de carro da capital, Arêdes tem 1.187 hectares. Constitui uma espécie de oásis circundado por explorações da Vale, Herculano, SAFM, Gerdau, entre outras empresas. Mas mesmo esse oásis pode perder um trecho para uma cava de mineração.

Sublinhando a influência do setor na ALMG, a Minar vem emplacando o PL 387/2023, que prevê que 28 hectares de Arêdes fiquem com a mineradora, em troca de 61 hectares a serem incorporados como compensação. A proposta, levada a frente pelo deputado João Magalhães (MDB), também não demonstra ser vantajosa sob exame de especialistas da área ambiental e do patrimônio.

A área desejada é outra vez de topo de morro (lembramos, a mais importante para a recarga hídrica de qualquer território), caracterizada pela presença das cangas ferruginosas, o que a torna duplamente importante do ponto de vista hidrogeológico. Capazes de absorver até 30% da água das chuvas, as cangas também são associadas a um ecossistema bastante particular, repleto de espécies endêmicas de fauna e flora.

Perto dali, Arêdes também abriga um rico complexo arqueológico remanescente do século XVIII — as ruínas das fazenda Arêdes e Águas Quentes — “que conta a história da ocupação de Itabirito”, assinala a arqueóloga, historiadora e pesquisadora associada do Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva (Cedefes), Alenice Baeta, que publicou um livro a respeito.

O acervo é composto de casas, capela, muros, currais, casa de fundição, canais e catas antigas, confeccionados em alvenaria de pedra, logo, raro exemplar da arquitetura vernacular mineira, com acabamentos diversos, compostos por blocos de canga e ou de quartzito em cantaria. A Fazenda Arêdes, explica Alenice, serviu para mineração rudimentar e como estalagem.

Em reunião realizada em outubro na ALMG, o MPMG apresentou um relatório técnico no qual pede o descarte do PL, apontando que a mudança traria perdas irreparáveis ao patrimônio cultural.

Porém a proposta já foi aprovada em três comissões da Casa e pode ser votada no Plenário em 1o turno. Parlamentares opositores cobram que o PL seja avaliado pela Comissão de Cultura em função do relicário arqueológico de Arêdes.

Serra do Curral

Entre as serras tratadas até aqui, a do Curral é a única não recoberta pela proteção de uma unidade de conservação. A Mata da Baleia, em seu sopé, desde 1986 é protegida por um parque estadual, mas o alinhamento montanhoso em si goza apenas de salva guardas patrimoniais, ainda que propostas no âmbito ambiental estejam surgindo.

O paredão que emoldura Belo Horizonte se estende por 12 quilômetros, dividindo a capital e Nova Lima e chegando ainda a Sabará. Em 1960, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) tombou o Pico Belo Horizonte e um trecho de 1,8 quilômetro visto a partir da Avenida Afonso Pena. Em 1991, a Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) tombou toda a porção da serra inserida nos limites do município.

Os tombamentos frearam um pouco, mas não impediram a desfiguração da paisagem. Do lado da capital, foi responsável sobretudo a Mina Granja Corumi, que funcionou por décadas até 1991, e do lado de Nova Lima, a Mina Águas Claras, que encerrou as atividades em 2002. As áreas devastadas até hoje não foram recuperadas.

Um movimento em prol do tombamento estadual da Serra do Curral, pensado para resguardá-la em sua integridade, começou a tomar forma na virada para a década de 2010. Em vias de se concretizar em 2020, faltando apenas a votação do Conselho Estadual de Patrimônio Cultural (Conep) para referendar a proteção, o governo de Minas colocou o processo em banho-maria, possibilitando que a Tamisa conseguisse antes as licenças para instalar um complexo minerário do lado de Nova Lima, o que em abril de 2022 se concretizou.

Paralelamente, o governo de Romeu Zema (Novo), que nunca escondeu sua simpatia pelo projeto da Tamisa, assinou seguidas permissões para explorações da Fleurs Global e da Gute Sicht, acusadas pela Polícia Federal de atuarem em conluio na extração ilegal de minério de ferro na Serra do Curral. As mineradoras atuavam, respectivamente, desde 2018 e 2021, e só este ano foram embargadas por força de decisões judiciais. A PBH apontou que a Gute avançou até mesmo sobre a área tombada na capital em maio do ano passado.

Impedindo o Conep de deliberar sobre o tombamento estadual da Serra e a Tamisa de se instalar na área, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) iniciou em agosto do último ano uma mediação parcial sobre o impasse. Não foi permitida a participação da sociedade civil, e a PBH, principal opositora à exploração da Serra entre as partes, não concordou com as negociações e se retirou da mesa. Após 15 meses de espera, a sociedade pôde se manifestar em audiência pública realizada no TJMG em 23 de novembro. Nas próximas semanas, o Tribunal enviará ao Estado de Minas suas considerações finais.

Para completar a lista de ameaças, veio a público em meados de novembro a notícia de que Agência Nacional de Mineração (ANM) e a Fundação Estadual do Meio Ambiente (Feam) autorizaram a Empresa de Mineração Pau Branco (Empabra) a retirar minério estocado na Mina Granja Corumi, totalmente inserida em área tombada da Serra do Curral. A justificativa é conter possíveis danos que possam acontecer com a chegada da época de chuva. Há 20 anos, a Empabra assumiu o compromisso de recuperar ambientalmente a área da mina, o que nunca se concretizou.

Segundo a Feam, a licença não permite a extração de minério, apenas a limpeza e escoamento de material já lavrado e que ficou na região após a paralisação das atividades da mineradora. Com o argumento da necessidade de custear as ações de recuperação, a Empabra, paradoxalmente, conseguiu junto à Semad novas permissões para explorar a área entre 2013 e 2018, período em que foi flagrada em diversas irregularidades, incluindo lavra ilegal.

O minério que vem sendo retirado pela Empabra é beneficiado pela Fleurs Global, uma das campeãs em crimes ambientais em Minas Gerais. Uma fonte interna de um dos órgãos de controle informou ao gabinete da deputada federal Duda Salabert (PDT) que no local há minério suficiente para encher 40 mil caminhões, a estimativa é de que o material valha cerca de R$500 milhões.

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