STF retoma julgamento histórico para o futuro das demarcações de terras indígenas - Projeto ManuelzãoProjeto Manuelzão

STF retoma julgamento histórico para o futuro das demarcações de terras indígenas

27/08/2021

No segundo texto do Agosto Indígena, apresentamos os impactos do julgamento no STF da repercussão geral da tese do “marco temporal” na demarcação de terras indígenas no país

No dia 9 de agosto comemorou-se o Dia Internacional dos Povos Indígenas, data criada pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 1994, visando elaborar uma Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas. Um dos principais objetivos da declaração é garantir a autodeterminação para os povos indígenas do mundo, como expressa no artigo 3º: “Os povos indígenas têm direito à autodeterminação. Em virtude desse direito determinam livremente sua condição política e buscam livremente seu desenvolvimento econômico, social e cultural”.

Ironicamente, no mês declarado como Agosto Indígena, avançam no Congresso Nacional pautas e projetos de lei que tornam as Casas curral de ruralistas, desmatadores e grileiros.

Esse é o tema de uma série de três matérias do Projeto Maneulzão que, na segunda parte, vai abordar o julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF), que servirá de modelo para decisões futuras sobre a questão, sobre a ação de reintegração de posse movida pelo governo de Santa Catarina contra o povo Xokleng, que reside junto dos povos Guarani e Kaingang na terra indígena (TI) Ibirama-La Klãnõ. O julgamento também vai analisar a decisão de maio de 2020 do ministro Edson Fachin de suspender os efeitos do parecer 001/2017, da Advocacia Geral da União (AGU), o chamado parecer do Marco Temporal, que reduziu a zero novas demarcações de terras indígenas durante os quase três anos nos quais vigorou.

Uma tese perversa

O STF retomou nesta quinta-feira, 26, o julgamento da repercussão geral da tese do “marco temporal” na demarcação de terras indígenas. Em suma, a tese de interesse do agronegócio, garimpeiros, grileiros etc, defende que apenas podem ser demarcadas as terras nas quais comunidades indígenas já viviam desde outubro de 1988, data da promulgação da atual Constituição. O julgamento, que servirá como referência para todos casos similares na Justiça, afetará diretamente quase 200 mil indígenas, que lutam pela demarcação de 303 terras no país.

Em razão disso, mais de 6 mil indígenas de 170 etnias estão acampados desde o domingo 22, na Praça da Cidadania, ao lado do Teatro Nacional, com uma agenda diária de plenárias, manifestações, vigílias e momentos de rituais e danças pela programação do acampamento Luta Pela Vida. Acompanhe a cobertura e apoie pelas redes da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).

Acampamento Luta Pela Vida rumo à vigília em frente ao SFT contra o Marco Temporal. Foto: Tuane Fernandes/Greenpeace

O julgamento foi interrompido após a leitura do resumo do caso pelo ministro Edson Fachin, relator do caso e será retomado na quarta-feira, 1 de setembro. Foi terceira interrupção desde que foi levado ao plenário do Supremo. Está prevista a sustentação oral por 15 minutos de 39 advogados e instituições até que os ministros votem, o que provavelmente não ocorrerá na próxima quarta.

A disputa que motivou o julgamento de repercussão geral é travada entre povos Xokleng, Kaigang e Guarani e o governo de Santa Catarina. O Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina, antiga Fundação Amparo Tecnológico ao Meio Ambiente (Fatma), pede a reintegração de posse de terras que estão em parte da Reserva Biológica do Sassafrás, onde fica a terra indígena Ibirama-La Klãnõ. Povos Xokleng, Kaigang e Guarani que ali vivem exigem a demarcação da Reserva Indígena de Ibirama-La Klãnõ.

Conheça a história do povo Xokleng, quase dizimado no século passado e que hoje, com cerca de 2,3 mil indivíduos, está no centro do debate sobre os direitos indígenas.

O Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) acolheu, em 2013, a tese do marco temporal ao conceder ao governo de Santa Catarina a reintegração de posse. Na ocasião, o TRF-4 manteve decisão tomada em 2009 pela Justiça Federal em Santa Catarina. O Supremo julga atualmente um recurso extraordinário da Fundação Nacional do Índio (Funai) que questiona a decisão do TRF-4.

Único ministro a se manifestar até então, o relator do recurso Edson Fachin, se colocou veementemente contrário ao marco temporal. Ele ressalta que muitas tribos foram expulsas de seus territórios e não têm como comprovar que estavam lá à época da promulgação da Constituição. Para Fachin, “a perda da posse das terras tradicionais por comunidade indígena significa o progressivo etnocídio de sua cultura, pela dispersão dos índios integrantes daquele grupo, além de lançar essas pessoas em situação de miserabilidade e aculturação, negando-lhes o direito à identidade e à diferença em relação ao modo de vida da sociedade envolvente, expressão maior do pluralismo político assentado pelo artigo 1º do texto constitucional”.

Em junho, a Procuradoria Geral da República (PGR) também apresentou parecer contrário ao marco temporal.

Congelar o tempo

O marco temporal é um entendimento jurídico que estipula que os povos indígenas só teriam direito à demarcação das terras que estivessem sob sua posse no dia 5 de outubro de 1988, ou, caso a terra não estivesse em sua posse, teriam que comprovar a existência de disputa judicial ou conflito material na mesma data. Essa perversa tese ignora as incontáveis expulsões e perseguições de indígenas ocorridas antes dessa data, como na Ditadura Militar, e a mudança natural pela qual qualquer comunidade, indígena ou não, passa após 33 anos.

Ignora também que até a atual Constituição os indígenas eram tutelados pelo Estado, sem direito a recorrer judicialmente. O que acontece então com as novas terras adquiridas por compra e venda? E com os processos judicializados de demarcação em trânsito? Como comprovar a presença de povos isolados em suas terras nessa data se há mais de 80 registros destes povos ainda não confirmados?

Encontros de jovens na TI Raposa Serra do Sol. Foto: J. Filho / Conselho Indígena de Roraima

A tese do marco temporal tem origem no argumento do relator do julgamento da homologação da terra indígena Raposa Serra do Sol, Carlos Ayres Britto, ocorrido em 2009. Na ocasião, ele firmou o data de promulgação da Constituição como “insubstituível referencial para o reconhecimento, aos índios, dos direitos sobre as terras que tradicionalmente ocupam”. Contudo, Britto também frisou o trecho “terras que tradicionalmente ocupam” como forma de invalidar “aquelas que venham a ocupar”, assim como “as terras já ocupadas em outras épocas, mas sem continuidade suficiente para alcançar o marco objetivo de 5 de outubro de 1988”. 

Para o professor e geólogo do Instituto de Geociências (IGC) da UFMG, José Antonio Souza de Deus, o argumento do marco temporal, não foi seguida, em termos literais, quando houve a decisão pró-demarcação da TI Raposa Serra do Sol. “É uma tese equivocada na medida em que ‘congela no tempo’ a trajetória das sociedades indígenas, ignorando as experiências de contato diferenciadas historicamente vivenciadas pelos povos indígenas nos diferentes recortes territoriais do Brasil, desconhecendo, também, o processo recente de reelaboração e ressignificação de identidades étnicas”, argumenta. 

O professor teve uma experiência de 6 anos no projeto de ensino para formação intercultural de educadores indígenas da Faculdade de Educação da UFMG, um curso especial direcionado aos professores indígenas mineiros das etnias Xakriabá, Pataxó, Krenak, Maxakali, Kaxixó, Pankararu e Xukuru-Kariri. Além disso, realiza pesquisas há mais de 30 anos com comunidades indígenas na Amazônia Legal, e com comunidades tradicionais e quilombolas do Vale do Jequitinhonha e de Belo Horizonte.

Baseado em sua vasta experiência na questão, Souza de Deus aponta o impacto do marco temporal, sobretudo, nas sociedades indígenas domiciliadas fora da Amazônia e que sofreram intensos processos históricos de desterritorialização, tendo sido compulsória e progressivamente constrangidas a ocupar “territórios de confinamento”, exíguos e degradados. É o caso dos povos no Sul do Brasil, a exemplo dos Xokleng, em Santa Catarina, e de etnias, inclusive, com contingente demográfico expressivo, como é o caso dos Guarani Kaiowá, no Mato Grosso do Sul.

Criança Xokleng em acampamento na floresta, em 1963. Foto: acervo SCS

“A tese ignora também o fenômeno recente de etnogênese, como o definem os antropólogos, pelo qual coletividades anteriormente identificadas como ‘caboclas’ têm buscado resgatar e reelaborar sua identidade étnica, se reassumindo como comunidades indígenas ‘ressurgida’. Esse processo tem incidido muito, por exemplo, na Região Nordeste”, complementa o professor. 

Existem, portanto, configurações recentes e povos que se identificam como “índios emergentes” e ainda lutam pelo reconhecimento de sua ascendência indígena após um intenso período histórico de aldeamentos e das chamadas “vilas de índios”. Seus antepassados indígenas sofreram processos de expulsões, reocupações de áreas, migrações e violência que implicaram a perda dos seus territórios e a submissão a grandes proprietários.

As chamadas “guerras justas” durante o período de ocupação do sertão nordestino obrigavam os sobreviventes a trabalhar como escravos em canaviais ou nas missões religiosas. E ainda hoje, aldeias e comunidades “caboclas” lutam para conseguir faixas de terras para desenvolverem suas atividades agrícolas, pastoris, pesqueiras e de coleta/artesanato.

“Parecer antidemarcação”

No mesmo julgamento de homologação da terra indígena Raposa Serra do Sol, o ex-ministro Carlos Alberto Direito propôs 19 condicionantes à demarcação, que foram usadas como referência no parecer normativo 001/2017, elaborado pela AGU, que entrou em vigor no governo de Michel Temer e ficou conhecido como o “parecer antidemarcação” ou o “parecer do genocídio”. O parecer buscava uma norma geral para os casos de demarcação e foi responsável por reduzir a zero o número de novas demarcações de terras indígenas durante o período no qual vigorou.

Entre as condicionantes estão a autorização de instalação de bases e intervenções militares, a expansão da malha viária, a exploração de alternativas energéticas e o resguardo das riquezas de “cunho estratégico a critério dos órgãos competentes (como o Ministério da Defesa e o Conselho de Defesa Nacional)” sem consulta às comunidades indígenas envolvidas e à Funai. Além da entrada e permanência da Polícia Federal e instalação de equipamentos públicos e de redes de comunicação, o que pode abrir brecha para o desmatamento visando empreendimentos privados.

Outro grave ataque à autonomia territorial indígena é o fato das condicionantes criarem enunciados normativos quando vedam a ampliação da terra indígena já demarcada, impedindo revisão do tamanho original de uma TI, por exemplo. O parecer 001/2017 foi derrubado por Fachin em maio do ano passado.

Mais de 6 mil indígenas marcharam pelo Eixo Monumental e acenderam 380 lâmpadas formando a frase “Brasil Terra Indígena”, em frente ao STF, na noite da terça-feira, 24. Foto: Ian Coelho (Divulgação Apib).

Mesmo após o STF decidir que as condicionantes só eram obrigatórias para a TI Raposa Serra do Sol, sucessivas tentativas de usar o caso para justificar a aplicação do marco temporal apareceram em outros julgamentos. Entre as condicionantes, existiam, inclusive, comandos contrários aos já estabelecidos na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), acordo internacional em que o Brasil é signatário e, portanto, tem poder de lei.

A Convenção 169 da OIT, ou a Convenção Sobre os Povos Indígenas e Tribais, foi firmada em 1969 em reconhecimento “das aspirações desses povos a assumir o controle de suas próprias instituições e formas de vida” e o direito ao “desenvolvimento econômico, e manter e fortalecer suas identidades, línguas e religiões, dentro do âmbito dos Estados onde moram”. Um importante ponto da Convenção é o direito à consulta e ao consentimento. Mesmo sob interesse do Estado ou “utilidade pública”, o que deve vigorar é a livre escolha dos povos ocupantes.

Uma reportagem da Folha revelou que ao menos 17 processos foram devolvidos à Funai pelo então ministro Sérgio Moro durante 2019 valendo-se do parecer. Cinco deles já tinham portarias declaratórias e esperavam apenas homologação.

Segundo o Instituto Socioambiental (ISA), entre o segundo semestre de 2019 e o início de 2020, durante a gestão de Bolsonaro, a Funai recebeu mais de 40 requerimentos pedindo a anulação de demarcações com base no parecer 001. Já no governo Temer, entre agosto de 2017 e fevereiro de 2018, 12 processos retroagiram com justificativa na norma, sendo que seis deles já estavam prontos para receber o decreto de homologação. Além disso, mais de 30 requerimentos de anulação de TIs foram encaminhados à Funai.

Quando o ministro Edson Fachin suspendeu todas as ações de reintegração de posse contra indígenas, como também as que pediam revisão de demarcações de terras tradicionais, e derrubou os efeitos do parecer 001, ficou pendente para o atual julgamento a decisão da corte referendar ou não a sua decisão.

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