Transformação ambiental e social com o Cultivando Águas - Projeto ManuelzãoProjeto Manuelzão

Transformação ambiental e social com o Cultivando Águas

08/02/2024

Projeto pela autonomia hídrica e preservação de saberes de comunidades mineiras fecha mais um ciclo

[Matéria de Enaile Almeida publicada nas páginas 20, 21 e 22 da Revista Manuelzão 94, na editoria Jornadas; republicamos aqui com algumas edições para adaptar o texto ao formato do site. Acesse a edição 94 e as edições anteriores da Revista Manuelzão através deste link.]

A segunda fase do Cultivando Águas, projeto de tecnologia social de captação de água da chuva do Manuelzão, encerra-se neste mês de dezembro. Ao longo de 2023, foram oito cisternas construídas em comunidades que enfrentam vulnerabilidade hídrica e socioambiental e ameaças ao território. A iniciativa combina educação ambiental emancipatória e capacitação técnica na construção coletiva de cisternas para captar água da chuva. Além da formação de cisterneiros e cisterneiras, o projeto fomenta as discussões ambientais nos territórios e a preservação do conhecimento e tradição das comunidades.

A capacidade de armazenamento das cisternas, que pode ser de 52 ou 16 mil litros, é determinada conforme a necessidade de cada localidade. Já a duração do processo de construção varia com as características hidrográficas e climáticas ou meteorológicas das regiões. Em média, são necessários 15 dias para a finalização completa da cisterna de maior capacidade e uma semana para a de menor capacidade.

Financiado por emenda parlamentar via gabinete da ex-deputada estadual Áurea Carolina, em parceria com a Fundação de Desenvolvimento e Pesquisa (Fundep), essa fase do projeto atuou em regiões que sofrem violações do direito à água, com ênfase naquelas atingidas pela atividade minerária.

Segundo Márcia Marques, geógrafa e coordenadora do Cultivando Águas, as atividades minerárias impactam direta e indiretamente a qualidade e quantidade de água disponível nos territórios. “Além de ser muito utilizada nos processos de produção, há ainda o rebaixamento do lençol freático nas cavas e a utilização no transporte pelos minerodutos. Tudo isso sem falar na grande ameaça das barragens de rejeito, como as que romperam nas bacias do Rio Doce e do Rio Paraopeba”, explica Márcia.

As obras começaram na Ocupação Vitória, na divisa entre Belo Horizonte e Santa Luzia. O cisterneiro ministrante do curso de capacitação na comunidade foi Valdeir da Silva, o Menor, morador da ocupação e primeiro cisterneiro formado pelo Cultivando Águas na capital. Menor conta que a falta d’água na comunidade, que abriga mais de 4.500 famílias, é alarmante. A cisterna é uma alternativa valiosa para o bairro, que já foi contemplado na primeira fase do projeto e faz uso dessa tecnologia para abastecimento de uma horta comunitária. Para ele, a participação na segunda fase foi uma grande alegria: “eu fiquei muito grato por essa conquista de estar formando mais pessoas, de poder passar o conhecimento pra frente”. A segunda cisterna da ocupação foi instalada numa cozinha solidária.

As cozinhas solidárias são uma iniciativa do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST) que tem o propósito de ajudar a combater a fome em um período de crise sanitária, social, econômica e política. Na Vila Ipê Amarelo, em Contagem, a cozinha solidária também recebeu uma cisterna.

Processo de construção na cozinha solidária da Ocupação Vitória. (Foto: Enaile Almeida)

Outras três foram construídas na comunidade quilombola de Queimadas, na divisa entre Serro e Santo Antônio do Itambé, a 325 quilômetros da capital. De volta à Grande BH, também foram contemplados o Centro de Reintegração Social APAC, Associação de Proteção e Assistência ao Condenado de Itabirito; o assentamento Ho Chi Minh, de Nova União, e a comunidade quilombola dos Arturos, em Contagem.

Vista do assentamento Ho Chi Minh, em Nova União, a cerca de 50 quilômetros da capital. (Foto: Ana Elisa Figueredo)

O modelo da cisterna de placas é considerado uma alternativa criativa e de baixo custo para acumular água nos territórios e melhorar a convivência com problemas de acesso e abastecimento. Mas, mais que isso, a proposta do Cultivando Águas é contribuir para a autonomia e emancipação das comunidades, reconhecendo o potencial que carrega a iniciativa no fortalecimento do espírito de coletividade nas localidades. Para Ana Elisa, estudante de Ciências Biológicas na UFMG e mobilizadora social do projeto, “são nessas ações que as pessoas começam a ver o poder de um coletivo, o poder do trabalho em conjunto de pequenas partes, que quando se somam criam uma coisa muito maior que o indivíduo, uma coisa que atende a todos”.

Ela destaca que na maioria dos territórios a falta d’água não era o único problema. Com o fortalecimento do contato entre moradores e a criação de uma rede de apoio com o Manuelzão, as comunidades se tornam mais preparadas para outras batalhas a serem travadas. “Isso fortalece nas lutas, seja por água potável, por saúde, por território, por reconhecimento cultural… Tem muitas coisas que só um coletivo unido e vivo consegue fazer, e  acho que a intervenção do projeto ajuda a reavivar as comunidades, dá uma esperança mesmo”, exalta a futura bióloga.

Para o funcionamento efetivo do mutirão de construção das cisternas, todos dependem da capacidade solidária uns dos outros. É na formação de alianças como essas que se torna possível criar novos sentidos sobre a humanidade em sua relação com o resto da Terra, dando vida, assim, aos paraquedas coloridos que evoca o ambientalista e filósofo Ailton Krenak: “[…] então, talvez o que a gente tenha de fazer é descobrir um paraquedas. Não eliminar a queda, mas inventar e fabricar milhares de paraquedas coloridos, divertidos, inclusive prazerosos”.

A resistência contínua das comunidades nas quais se instala é um dos combustíveis para o propósito do Cultivando Águas. No Quilombo dos Arturos, um dos mais antigos agrupamentos quilombolas do país, a construção da cisterna deu início a uma nova parceria. Os Arturos recebeu do estado de Minas o primeiro registro de patrimônio cultural imaterial para uma comunidade tradicional, pela manutenção de diversos bens culturais, ritos e tradições herdadas pelos primeiros membros de sua formação.

De acordo com Gracielly Naiara, quilombola, moradora e coordenadora de Projetos dos Arturos, a comunidade enfrenta hoje desafios diretamente ligados a empreendimentos propostos pelo estado sem diálogo com as pessoas que serão diretamente impactadas. É o caso do projeto de construção do Rodoanel Metropolitano, cujo traçado passa a 1 quilômetro do território, pela bacia de Várzea das Flores, um dos mananciais que compõem o sistema de abastecimento metropolitano. A cisterna da comunidade será utilizada para consumo humano e irrigação de uma horta comunitária, implementada como uma estratégia para garantir a segurança alimentar de 200 famílias e 700 pessoas que ali habitam.

Para Naiara, o Cultivando Águas conversa profundamente com a comunidade. “Nós não pensamos somente no hoje, no agora. Todas as nossas ações são pautadas, também, pensando no amanhã e no depois. Nós que estamos dentro dessas comunidades, dentro desses territórios tradicionais, ancestrais, sagrados, nós que trabalhamos a regeneração das nossas terras, das nossas águas, e preservamos isso como grandes guardiões, nós nos preocupamos muito com o futuro da comunidade, com o futuro histórico ancestral que a gente preserva”.

Queimadas foi a segunda comunidade quilombola contemplada pela tecnologia da cisterna. Localizada entre os municípios de Serro e Santo Antônio do Itambé, abriga cerca de 50 famílias e 250 pessoas. O território é dividido em cinco regiões, entre elas Cabeceira de Mumbuca e Arraial de São José das Maravilhas, que receberam três das cisternas. A execução na localidade foi possível através da parceria entre o Projeto Manuelzão e o Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM). Há cerca de um ano, moradores de Queimadas têm percebido significativo impacto de projetos de mineradoras na mata do território.

Fabricação das placas de levante na comunidade quilombola de Queimadas, na divisa entre Serro e Santo Antônio do Itambé. (Foto: Enaile Almeida)

Valderes Quintino Silva, morador da comunidade quilombola de Queimadas, defende a importância de atrair atenção para o território nesse momento de enfrentamento. “Essa possibilidade que o projeto trouxe pra gente nos dá força para resistir a esse poder capitalista que é a mineração. A gente fica feliz em ver que pessoas se interessam em dar instrumentos de resistência pras comunidades, tanto na questão de formação mas também na questão social da comunidade. O projeto veio para somar com a gente nesse momento de luta, mas também traz esse brilho pra comunidade, pra gente criar ferramentas para combater isso”.

O isolamento e apagamento são problemas sérios para as comunidades quilombolas. O Censo 2022 foi o primeiro a identificar e contabilizar moradores dessas áreas. A partir de um acordo entre o IBGE e a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), foi possível identificar que a população quilombola chega a 1,3 milhão de pessoas no Brasil. Dos mais de 5 mil municípios brasileiros, 1.696 registram presença de pessoas autoidentificadas como quilombolas, mas somente 326 cidades têm territórios delimitados.

Contar as histórias de comunidades tradicionais, a partir do Cultivando Águas, é uma maneira de contribuir no fortalecimento dessas populações diante da constante ameaça a seus direitos. Assim é possível caminhar pela inclusão equitativa nas políticas públicas e prestação adequada de assistência a essas pessoas.

Como já mostrou a história, a perspectiva sobre a água como mero produto negligenciou a importância ambiental, social e cultural desse elemento do qual somos também compostos. O Cultivando Águas, além de tudo, aponta para o caminho contrário. Mesmo quando há falta, tecer novas alianças é resgatar relações de pertencimento com a terra. É lembrar, como defendia a bióloga Lynn Margulis, que “a vida é um fenômeno de escala planetária”.

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