Após carta branca de conselho "ambiental", fantasma da mineração volta a assombrar a Serra da Piedade - Projeto ManuelzãoProjeto Manuelzão

Após carta branca de conselho “ambiental”, fantasma da mineração volta a assombrar a Serra da Piedade

04/09/2021

O Conselho Estadual de Política Ambiental (Copam) rejeitou por 14 votos a 2 o recurso da Arquidiocese de Belo Horizonte contra a exploração da Serra da Piedade pelo Grupo AVG

[Matéria alterada no dia 8 de setembro para esclarecer que a AVG executa “exploração” somente a partir do que é retirado para recuperação do passivo, sem comprovação de atividade minerária após retirada das licenças pelo TJMG]

O Conselho Estadual de Política Ambiental (Copam) indeferiu, na última quarta-feira, 25, um recurso movido pela Mitra Arquidiocesana de Belo Horizonte contra um projeto de mineração do Grupo AVG na Serra da Piedade, que se estende de Caeté a Sabará, na Grande Belo Horizonte. O recurso pedia a suspensão das licenças prévia e de instalação concedidas, em 2019, pela Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad) para atividades na Mina do Brumado, paralisada desde 2005, quando a extinta Brumafer foi impedida pela Justiça de atuar na região.

O recurso foi indeferido por 14 votos a 2. Apenas o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) e a Associação Mineira de Defesa do Meio Ambiente (Amda) foram contra o projeto de mineração na área conhecida como “fazenda do Brumado”, em Sabará, e que faz divisa com a encosta da Serra da Piedade.

Desde a concessão das licenças, os movimentos ambientalistas locais, como o SOS Serra da Piedade, e a Arquidiocese de Belo Horizonte começaram a travar uma luta contra o empreendimento. Em fevereiro deste ano, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) aceitou o recurso ajuizado e suspendeu o licenciamento. O desembargador Wilson Benevides afirmou que as licenças descumpriram um acordo judicial de 2012, no qual o Grupo AVG assumia o compromisso de recuperar a área devastada. 

O recurso movido pela Arquidiocese, responsável pelo Santuário Nossa Senhora da Piedade, fincado no alto da serra, usou dos argumentos apresentados em parecer pela Agência Nacional de Mineração (ANM). Entre as denúncias feitas pela órgão estão a alteração de limites, extrapolando áreas já mineradas e o volume de minério a ser retirado e o descumprimento do acordo judicial para a recuperação ambiental da Mina do Brumado. As pilhas de rejeito seco estariam sendo tratadas sem levar em conta aspectos de segurança geotécnica, de proteção ambiental e das comunidades no entorno. 

A Arquidiocese aponta que a nova mineradora valeu-se de uma brecha no acordo que indica a possibilidade de promover pontuais intervenções em espaços intocados da Serra da Piedade, quando forem indispensáveis para garantir a recuperação global da mina, para desenvolver o plano de exploração na região. O acordo previa somente a recuperação do passivo e fechamento de mina, mas permitiu-se que o empreendedor aproveitasse economicamente o que fosse retirado para garantir que não houvesse abandono sob justificativa monetária. É o que afirma a ambientalista Maria Teresa Corujo, conhecida como Teca:

“A grande questão é que deveria ser puramente a recuperação do passivo para os alteamentos, ou bancadas, que não foram obedecidos na lavra predatória anterior, segundo geólogos. Então, há sim exploração mineral no sentido de aproveitamento econômico do que está sendo retirado. Nós nunca concordamos que pudesse ser aproveitado, o princípio de poluidor-pagador não prevê mais destruição para pagar o que já se destruiu. Inverte totalmente a ordem”.

Em nota de fevereiro, a instituição religiosa apontou que “se executado, sob pretexto de recuperar uma área devastada, este plano promoverá mais degradação ambiental de um território com tombamentos municipais, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico (Iepha-MG) e reconhecido como reserva de Biosfera pela Unesco”.

A decisão do Copam ignorou também o pedido de vistas do MPMG, que pedia que não fosse votado no último dia 25, permitindo a avaliação do relatório da ANM pelos técnicos da Superintendência Regional de Meio Ambiente (Supram).

A decisão do Copam corrobora a denúncia de 2019 da Controladoria-Geral do Estado (CGE) mostrando que o conselho estadual tem se mostrado pró-mineração em 90% dos casos. Na época, 8 dos 12 membros do conselho representavam empresas e órgãos minerários ou pró-minerários. O relatório analisou a atuação da Câmara de Atividades Minerárias (CMI) entre os meses de fevereiro de 2017 e abril de 2019, período que também foram concedidas as licenças à AVG.

Modelo predatório e ganância

Mina do Brumado. Foto: Frei Gilvander Moreira

Ademir Bento, aposentado, morador de Caeté e profundo conhecedor da história da cidade, conta que antes mesmo da Serra da Piedade abrigar o santuário que se tornou palco da festa da padroeira do estado, ela já era uma referência. Bento também é um dos fundadores do Movimento Artístico Cultural e Ambiental de Caeté (Macaca), que atua há 20 anos na proteção ambiental e do patrimônio histórico da região, resgatando e valorizando a cultura e os movimentos artísticos locais.

“A mineração funciona assim: eles compram a imprensa para falarem bem e convencerem a população. Foi uma guerra desde o início. Não é que sou contra a mineração, mas sou contra o modelo. Somos praticamente obrigados a ser contra. Foi a promotoria de patrimônio cultural que abraçou a causa, porque tentaram alterar os limites do Monumento Natural Estadual Serra da Piedade, o limite do tombamento. A AVG comprou a área para preservação e recuperação, mas o que se vê é um projeto todo contrário, avesso à recuperação do parque”, conta Bento.

O mobilizador social aponta que o poder público anda de braços dados com a mineração. “Eles têm trânsito livre dentro da Fiemg [Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais] e até da Semad. Então, eles conseguiram a licença para minerar, justificando que não haviam como recuperar sem explorar. A Semad passou por cima da ANM”, denuncia.

Teca esteve na reunião do Copam e avalia como gravíssimo o que aconteceu, sobretudo porque os conselheiros e a Supram tinha conhecimento do relatório da ANM confirmando que o processo de licenciamento violava o acordo judicial. “Estamos vivendo situações de ilegalidade institucionalizada nestes órgãos”, afirma Teca, que coordena o SOS Serra da Piedade desde 2001.

Em nota publicada no dia da resolução, a Arquidiocese foi categórica ao afirmar que “a mineração que desconsidera a legislação, o meio ambiente, a vida e o bem comum é séria agressão à dignidade humana. Não é possível colocar em risco o bem comum, a natureza e a vida das pessoas, em nome de uma exploração predatória que visa apenas o lucro […]. Torna-se agressivo e vergonhoso quando órgãos que precisam ser sérios e não manipuláveis fomentam crimes  ambientais camuflados institucionalmente – com aparência enganosa de legalidade. Se não houver revisão profunda em todo o processo envolvendo a atividade extrativista e as empresas minerárias, vamos continuar convivendo com tragédias ainda mais cruéis. Urgentemente, é preciso dar um basta a esta nossa triste realidade de lutos, perdas e muito sofrimento provocados pela ganância”.

A mineração continua sendo uma pedra no caminho, avalia Ademir. “Sou filho de Caeté e a preocupação maior é com o fato de que o minério tem alto teor de qualidade, e quando você menos espera, eles passam o direito minerário para outras empresas, como a Vale, o que seria muito ruim”, lamenta.

Por outro lado, Teca continua esperançosa e convoca a ação: “não vamos parar de atuar para defender a Serra da Piedade. Ainda mais agora, que a atividade estava restrita à recuperação do passivo, já que a área toda é tombada a nível estadual e federal. É inaceitável que no bojo de um processo de recuperação isso se transforme novamente num projeto minerário em um patrimônio paisagístico, natural e religioso que é a Serra da Piedade”.

A Serra da Piedade é tombada pelo Iepha e Iphan e é reconhecida como reserva da Biosfera pela Unesco. Foto: Ivan sob licença CC 4.0.

Além do Santuário Basílica Nossa Senhora da Piedade, que data de mais de 250 anos, a Serra da Piedade abriga biomas de Mata Atlântica e Cerrado, duas áreas de proteção ambiental municipais (APA’s) e uma reserva particular do patrimônio natural (RPPN). Ela pertence à Reserva da Biosfera da Serra do Espinhaço e ao Mosaico do Quadrilátero Ferrífero, além de ter um centro de estudos astronômicos mantido pela UFMG no Observatório Astronômico Frei Rosário.

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