23/07/2024
Poços cavados em 2015 pelo SAAE de Itabirito para fornecer 514 mil litros d’água diários para a empresa desabasteceram comunidades de Campinho e Suzana em Brumadinho
O Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) firmou, no fim de junho, um acordo com a Coca-Cola FEMSA, o Serviço Autônomo de Água e Esgoto (SAAE) de Itabirito e a Prefeitura de Brumadinho para garantir o abastecimento das comunidades Campinho e Suzana, em Brumadinho. A região ficou sem água após o SAAE de Itabirito secar cinco nascentes, em 2015, ao cavar poços para fornecer 514 mil litros d’água diários à fábrica da Coca-Cola em Itabirito, às margens da BR-040.
O termo de compromisso assinado é fruto de uma denúncia realizada pela ONG Abrace a Serra da Moeda ao MPMG, ainda em 2015, sobre os bombeamentos feitos pelo SAAE. Três nascentes secaram em Campinho, duas em Suzana e várias outras tiveram a vazão reduzida, parte delas ficando intermitente. Desde então, Campinho passou a ser abastecido com 40 mil litros d’água diários fornecidos pela Coca-Cola por meio de caminhões-pipa.
Pelo acordo, o SAAE de Itabirito tem um ano para elaborar, junto à Coca-Cola, um estudo de abastecimento complementar para a região de Água Limpa, em Itabirito, para normalizar a situação em Campinho e Suzana. A Coca-Cola deve providenciar a perfuração de um poço para captação de água subterrânea para abastecer Campinho, com apoio da Prefeitura de Brumadinho, que o assumirá depois de pronto.
Além disso, a empresa fica obrigada a destinar R$ 800 mil a projetos socioambientais beneficiando Campinho e comunidades vizinhas, através da Plataforma Semente do MPMG. Os impactos ambientais do rebaixamento dos lençois freáticos e o secamento de nascentes em si, bem como a morte da fauna e da flora que dependiam delas, não foram abordados.
Gilmar dos Reis, empresário e dono de uma casa em Campinho, teme que a relação com as águas no local nunca mais seja a mesma. “Minha casa pertenceu à minha mãe e à mãe dela antes. Passou de geração para geração. Antes existia agricultura de subsistência, jardim, horta, pomar. Tudo regado com as águas da nascente. Campinho sempre viveu das águas da nascente, era distribuída em regos d’água. Agora não existe mais nada disso. Nós não temos certeza de que o poço [que a Coca-Cola irá cavar] vai abastecer direito. Vai que fura, abastece por um ano e seca. Aí vão falar que cumpriram o acordo e que não têm mais que fazer nada”.
Integrante da ONG Abrace a Serra da Moeda, Cleverson Vidigal, avalia que o acordo atendeu parcialmente às reivindicações dos movimentos e comunidades, mas também faz ressalvas. “Considero muito baixo o valor de R$ 800 mil reais que será pago pela Coca-Cola para custear projetos socioambientais, considerando a magnitude do dano ambiental provocado. Vejo que, com o pagamento dessa compensação, os infratores transferem para a sociedade civil a obrigação de realizar a recuperação ambiental”.
O embate pela água entre a Coca-Cola FEMSA e as comunidades do entorno e, em último nível, entre as bacias do Rio das Velhas e do Paraopeba, abastecidas pelas nascentes que brotam na Serra da Moeda, remonta a 2015, quando a empresa abriu sua unidade em Itabirito, chamando-a de “a maior fábrica verde do sistema Coca-Cola do mundo”.
A Associação Mineira de Defesa do Meio Ambiente (AMDA) vem denunciando que a “Fábrica da Felicidade” estaria secando ou reduzindo significativamente a vazão de nascentes do rios Paraopeba e das Velhas, responsáveis por quase toda a água de Belo Horizonte e região metropolitana. Os poços perfurados também destruíram parte do rico ecossistema da Serra da Moeda.
“Houve uma redução significativa na vazão das nascentes em toda a região”, explica Francisco Mourão, biólogo da AMDA. Ele diz que, desde que a fábrica começou as atividades, várias comunidades, principalmente do lado de Brumadinho e de Moeda, tiveram seus lençois freáticos rebaixados. Há locais que estão sendo abastecidos por caminhões-pipa e “alguns dos caminhões são enviados pela própria Coca-Cola”, conta Mourão.
Cleverson Vidigal lembra que o empreendimento da Coca-Cola foi implantado no distrito industrial de Itabirito, em uma área onde estava planejada a construção de três indústrias. Para essa previsão foi elaborado o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) do distrito, mas no lugar dessas três fábricas foi instalada a Coca-Cola FEMSA, que tem alta demanda por água, sua principal matéria-prima.
“Era de se esperar que o município de Itabirito refizesse o EIA como forma de avaliar os impactos dos bombeamentos de água para a fábrica em toda a região, inclusive na vertente leste no município de Brumadinho, onde ficam as comunidades de Campinho e Suzana. E não foi estipulado o impacto hídrico nas nascentes da vertente oeste da Serra da Moeda em Brumadinho”, pontua Cleverson.
Durante o processo de licenciamento da Coca-Cola houve também omissão dos órgãos responsáveis não não se exigir um novo EIA adequado à fábrica de refrigerantes. “A Coca-Cola só elaborou o RCA/PCA [Relatório de Controle Ambiental/Plano de Controle Ambiental] que são relatórios bastante simplificados. Também, não foi requerido um estudo hidrogeológico abrangente para avaliar a disponibilidade hídrica e os impactos regionais” continua o integrante da ONG Abrace a Serra da Moeda.
Em 2015, ao acatar a denúncia da Abrace a Serra, o MPMG determinou uma investigação técnica sobre os possíveis danos às nascentes. No desenrolar do inquérito civil, a ONG contestou todos os relatórios apresentados pelo SAAE de Itabirito e a Coca-Cola, demonstrando as inconsistências nos documentos. A justificativa dada pelos acusados para a falta de água foi a ausência de chuvas entre 2012 e 2019.
A desculpa foi depois refutada pelo próprio SAAE de Itabirito, em 2022, que apresentou estudos comprovando a interferência dos bombeamentos nas nascentes de Campinho e Suzana. O MPMG contratou o Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) de São Paulo que auditou os relatórios e corroborou os danos apontados pelo SAAE de Itabirito.
Após a comprovação da interferência nas cinco nascentes, o MPMG propôs o termo de compromisso assinado no último dia 26. O Instituto Mineiro de Gestão das Águas (Igam), que concede outorgas para o uso de água, é interveniente no acordo.
Para Cleverson, além de não dar a devida importância ao impacto ambiental causado e transferir à sociedade civil a obrigação das ações de recuperação, “o acordo foi bastante genérico quanto ao plano de monitoramento estabelecido”. “Uma de nossas reivindicações era a instalação de um piezômetro [ferramenta que mede a pressão e o nível de água no solo] no alto da serra, entre os poços de bombeamento e as nascentes de Campinho e Suzano”.
O termo de compromisso, contudo, só menciona a adição de novos pontos de monitoramento complementares à rede existente, voltados para monitorar eventuais impactos da operação do sistema de abastecimento nas nascentes da região.