29/07/2021
Governo do Estado aderiu a edital do Ministério do Meio Ambiente para financiar incineração de resíduos, prática condenada por especialistas e movimentos de catadores; recurso faz parte do acordo da Vale
“CDR é incineração!” Esse é o grito de movimentos de catadores, entes públicos e associações de saneamento que alertam para os riscos ambientais e ilegalidades da implantação do Edital 1/21 do Ministério do Meio Ambiente. A chamada pública federal prevê 100 milhões de reais para a produção de combustível derivado de resíduos (CDR), através da queima de rejeitos sólidos. Em Minas, o projeto tem o apoio do governo Zema (Novo) e foi lançado na sede da Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais (Fiemg), em maio, com a presença do então ministro Ricardo Salles.
Na último dia 21 de julho, o Movimento Minas Gerais Contra a Incineração, que inclui 163 entidades e representantes, convocou manifestações em 14 cidades do estado, cobrando a suspensão do edital. A Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental (ABES-MG) e o Observatório da Reciclagem Inclusiva e Solidária (Obis), em parceria com o Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR), também já emitiram notas técnicas denunciando o projeto. No dia 14 de junho, foi feita uma audiência pública na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) para discutir o tema, com a presença desses entes.
Nas manifestações desde o lançamento do edital, os profissionais da coleta de lixo e movimentos sociais pedem a suspensão e revisão imediatas para corrigir ilegalidades e eliminar a obrigação de implantação das usinas de CDR. Segundo eles, há brechas na lei estadual de tratamento de resíduos sólidos (PERS-MG) que permitem a incineração, e portanto ela também deve ser revista.
Desenvolvimento sustentável?
A incineração é defendida como uma política de “melhoria da gestão” dos recursos sólidos urbanos, “sustentável” por diminuir o volume do material, gerar energia e “evitar o uso de lixões”, vide o nome do edital. Mas incineração não é energia limpa: queima combustíveis fósseis, danifica a atmosfera e causa problemas respiratórios. Sem filtragem correta, são liberados metais pesados e poluentes orgânicos persistentes (POPs), cancerígenos e extremamente resistentes à degradação. Além disso, enquanto o lucro vai para as empresas do setor, o poder público arca com os investimentos para reduzir riscos de contaminação.
Por não realizar a triagem dos materiais e competir com a reciclagem, a incineração impacta diretamente o trabalho dos catadores de resíduos sólidos, acarretando no aumento do desemprego de uma classe já marginalizada, além de afetar a coleta seletiva já existente. A indiferenciação dos resíduos – matéria orgânica em decomposição, gases tóxicos etc. – nas plantas de incineração, como nos lixões, são associados a péssimas condições de trabalho. A incineração foi excluída das práticas sustentáveis da União Europeia, por exemplo.
Outra questão levantada pelos movimentos é que o CDR serve como combustível no coprocessamento de resíduos em fornos de cimento. É um aceno para o setor cimenteiro que não necessariamente tem interesse público. O coprocessamento não substitui o uso de combustíveis fósseis, já que o plástico é derivado de petróleo. Na hierarquia tecnológica de gestão de resíduos, portanto, a incineração fica acima apenas do aterramento, pois polui o ambiente com cinzas e gases tóxicos e de efeito estufa e chuva ácida.
Desdobramentos
Após os protestos e a repercussão negativa, o governo estadual lançou nota negando a participação nos “termos e condução” do edital. Mas o Minas Contra a Incineração lembra que o executivo estadual participou ativamente dos atos, “divulgando o edital, assessorando tecnicamente os consórcios intermunicipais na elaboração dos projetos, realizando eventos públicos nas várias regiões do estado e participando de reuniões interinstitucionais”.
Esse não é o primeiro projeto de uso da multa da Vale – fruto de um crime ambiental – para financiar ações que causam dano ao meio ambiente. O novo Rodoanel, tido por ambientalistas e movimentos sociais como risco à integridade das comunidades de Vargem das Flores, além de não resolver o problema da mobilidade urbana, além do investimento no construção do Plano Estadual de Mineração, são outros.
Sistemas de saneamento e valor social do resíduo
Em audiência na ALMG, no mês passado, o professor da Escola de Engenharia da UFMG e membro do Obis Francisco de Paula Antunes Lima apresentou a nota técnica do Observatório. Ele falou dessa suposta “recuperação” de resíduos que na verdade são coletados de forma indiferenciada, em detrimento da coleta seletiva em três etapas. Também defendeu o sistema de compostagem urbana, contratação de catadores e experiências de lixo zero, além do respeito à hierarquia tecnológica de saneamento.
Outro conceito importante é o de valor social do resíduo, que norteia a luta dos catadores e defensores do lixo zero: o resíduo tem potencial de gerar trabalho e renda, e os catadores devem ser integrados no sistema. Eles fazem um serviço urbano e ambiental fundamental para a vida nas cidades, e precisam ter seu trabalho resguardado e valorizado.
Isso é algo que a Política Estadual de Resíduos Sólidos de Minas Gerais prevê: a eliminação e recuperação dos lixões deve estar sempre associada à inclusão social e à emancipação econômica de materiais reutilizáveis e recicláveis. Por outro lado, é nessa lei estadual que está a brecha denunciada pelos movimentos. Ela proíbe a incineração, mas permite o coprocessamento de resíduos (CDR) em fornos de cimento. Por isso, “CDR é incineração”.
Matéria de Mariana Lage