Heineken desiste de fábrica em sítio arqueológico, mas busca outro município mineiroProjeto Manuelzão

Heineken desiste de fábrica em sítio arqueológico, mas busca outro município mineiro

16/12/2021

Obras em Pedro Leopoldo haviam sido embargadas pelo ICMBio em setembro; além da ameaça ao patrimônio da APA onde Luzia foi encontrada, licenciamento tem diversas irregularidades

Réplicas impressas em 3D da reconstituição do rosto de Luzia e de seu crânio original expostos no jardim do Museu Nacional. As peças foram perdidas no incêndio. Foto: Fernando Frazão / Agência Brasil.

Nos últimos meses, a Heineken estava em vias de licenciar uma fábrica de cerveja em Pedro Leopoldo, na APA Carste de Lagoa Santa, sítio arqueológico tombado onde Luzia, o primeiro fóssil das Américas, foi encontrada. Na última segunda-feira (13), a empresa holandesa desistiu da construção no local, que é patrimônio histórico, hidrogeológico, espeleológico e arqueológico. Mas já anunciou que busca outro município para receber a fábrica.

O Instituto Chico Mendes (ICMBio-MG) havia embargado as obras em setembro deste ano, devido a irregularidades no licenciamento, inclusive por parte do governo estadual, na Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad). Segundo o relatório, a empresa não respeitou a compatibilidade do empreendimento com o Decreto de Criação e o Plano de Manejo da APA (Área de Proteção Ambiental) e não apresentou a quantidade suficiente de estudos de impacto.

A área de 1,7 hectares que a cervejaria ocuparia inevitavelmente afetaria a área de influência do Monumento Natural Estadual da gruta Lapa Vermelha IV, onde Luzia foi encontrada, que faz parte da APA. A região é um complexo espeleológico, de grutas e cavernas, com alta importância hídrica, com águas subterrâneas interconectadas, um dos sítios arqueológicos mais importantes da América Latina.

“Ficou claro, no relatório de embargo do ICMBio, que houve facilitação ao empreendimento, já que as condicionantes do licenciamento ambiental foram flexibilizadas”, critica Procópio de Castro, presidente do Instituto Guaicuy e coordenador do Projeto Manuelzão, sobre a conivência do governo Zema (Novo) em relação à Heineken. “A função do Estado é ser coordenador do desenvolvimento sustentável, não estar subjugado ao crescimento econômico acima de todas as outras questões legais, sociais e ambientais. É necessário incentivar ações de igualdade dos pilares do desenvolvimento: social, ambiental e econômico.”

Oportunidades irregulares

Em 2020, havia sido anunciada pelo governador Romeu Zema (Novo) uma parceria entre a cervejaria holandesa Heineken e o governo de Minas Gerais que prometia o investimento de 1,8 bilhão de reais no município de Pedro Leopoldo, com um “megaempreendimento” e “oportunidades de emprego”, com emojis de cervejas brindando. “O governador foi à televisão comemorar o licenciamento, que ganhou um cunho político-partidário”, explica Procópio de Castro.

A Semad apresentou estudos de impacto insuficientes e não havia notificado o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) no processo, obrigação em licenciamentos que envolvam bens patrimoniais e históricos tombados. Após questionamento do Instituto, o governo de Minas demorou mais de um mês para responder. Além do desconhecimento por parte do Iphan, o empreendimento não tinha autorização do gestor da unidade de conservação da APA, o Instituto Estadual de Florestas (IEF).

Além do embargo do ICMBio-MG, o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), instaurou um inquérito civil para apurar os impactos e violações no processo de licenciamento. E houve forte pressão popular contra a instalação da cervejaria, além da cobertura nacional sobre o caso, devido à importância do fóssil, que acredita-se ter 11 mil anos.

A Sociedade de Arqueologia Brasileira (SAB) publicou nota contra a Heineken, em que “manifesta repúdio à ilegalidade e irregularidades do processo de licenciamento ambiental, […], à disseminação de informações falsas com o objetivo de colocar a população contra a preservação e conservação do patrimônio ambiental e cultural desta região.” E cita a constitucionalidade do “Patrimônio Arqueológico Brasileiro, a que as gerações atuais e futuras têm direito”.

Carste ameaçado

A instalação da fábrica traria alto risco geológico à região da APA Carste: poderia causar danos irreparáveis ao patrimônio espeleológico da unidade de conservação, inclusive soterrar parte do complexo de grutas e cavernas. O lençol freático seria rebaixado e a qualidade da água local diminuiria. Com isso, o abastecimento de Pedro Leopoldo, Confins, Lagoa Santa e Matozinhos seria afetada, além do Parque Estadual e a lagoa do Sumidouro, vizinhos à APA, seria afetado.

Carste, ou geomorfologia cárstica, é caracterizado pela corrosão de rochas calcárias e complexo de grutas e sítios arqueológicos. O complexo de cavernas Lapa Vermelha fica na APA Carste Lagoa Santa. O sítio arqueológico só foi parcialmente escavado e também tem pinturas rupestres e material lítico, remanescentes da ocupação ameríndia na região.

A APA em Pedro Leopoldo, portanto, era de interesse da Heineken devido a sua riqueza hídrica. Segundo o ICMBio-MG, uma das fontes de captação para produzir a cerveja é o subsolo, com um volume de 310 m³ por hora – suficiente para abastecer uma cidade de aproximadamente 37 mil habitantes. Ao Repórter Brasil, o biólogo e antropólogo Walter Neves alertou que “qualquer coisa que mexa na dinâmica de água subterrânea do carste é um desastre”.

O esqueleto de Luzia foi encontrado em 1975 e seu rosto foi reconstituído em 1999. Essa não é a primeira vez que o patrimônio de Luzia sofre com o descaso do poder público. Em setembro de 2018, o crânio do fóssil foi atingido pelo incêndio que do Museu Nacional, no Rio de Janeiro. 80% dos fragmentos foram encontrados e uma réplica passou a substituí-la.

Corrida ao balcão

Após o embargo do ICM-Bio e R$ 83 mil em multas, a Heineken conseguiu uma liminar para retomar as obras, mas as manteve paralisadas. Agora, a empresa anunciou que vai continuar em Minas Gerais e anunciar o novo município em 2022. É possível esperar que seja outro local com vazão e qualidade de água significativas, além de facilidade de acesso para escoamento e chegada da produção.

“Vários municípios agora começaram a correr atrás da tentativa de levar para seu território o empreendimento, oferecendo vários benefícios à empresa”, observa o presidente do Guaicuy. Em Cordisburgo, no sudeste mineiro, foi feito um estudo locacional pela Heineken perto da Gruta da Morena. A gruta é a 4ª maior do estado, tem 4,5km de extensão e, dentro dela, corre um riacho.

A prefeitura de Capim Branco, próxima a Pedro Leopoldo, no noroeste da região metropolitana de Belo Horizonte, anunciou em rede social que “já cadastrou áreas no âmbito do município […] para possível interesse do Grupo HEINEKEN em instalar sua atividade empresarial”. O informe cita que um dos critérios é “zoneamento não relacionado a áreas de proteção ambiental”.

“É muito importante que o estado aprenda que, se facilitar licenciamento sem escutar a sociedade, haverá embate, haverá embargo e o resultado é a imagem arranhada do estado e da empresa”, finaliza Procópio de Castro.

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