18/06/2024
Mineradora valeu-se de uma decisão em primeira instância que contraria sentença da Justiça Federal para seguir rito de licenciamento antes de realizar consulta prévia
A Herculano Mineração realizou na última terça-feira, 11, a audiência pública referente ao processo de licenciamento do empreendimento que tenta instalar no município do Serro, na região Central de Minas Gerais. A realização da audiência contraria uma decisão da 4ª turma do Tribunal Regional Federal da 6ª Região (TRF-6) que, por 3 votos a 0 determinou, em outubro do ano passado, a suspensão do licenciamento da mineradora enquanto não houver a consulta prévia ao Quilombo Queimadas, localizado na área afetada pelo projeto.
A suspensão da audiência foi revertida em primeira instância pelo juiz Flávio Bittencourt de Souza. O juiz contrariou a decisão superior e o entendimento de violação da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) que determina que as comunidades tradicionais devem ser previamente consultadas cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis a afetá-las diretamente.
Para Valderes Quintino Silva, morador da comunidade quilombola de Queimadas, vice-diretor administrativo da Federação das Comunidades Quilombolas do Estado de Minas Gerais – N’Golo e militante do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM), “a audiência pública realizada pela Herculano é uma afronta a todos os direitos previstos na Convenção 169, que fala que as comunidades devem ser consultadas antes de qualquer ação das mineradoras, sobre quaisquer atividades realizadas.”
Juliana Deprá, da coordenação estadual do MAM, aponta que os estudos que a empresa é obrigada a fazer, principalmente do componente quilombola, vão ser incorporados ao Estudo de Impacto Ambiental (EIA) do empreendimento. No seu entender, qualquer audiência teria de acontecer depois de todos os estudos e, claro, do processo de consulta livre, prévia e informada e do consentimento do Quilombo Queimadas.
Nos últimos meses, a comunidade quilombola vem sofrendo pressão da mineradora e de seus apoiadores pela elaboração do protocolode consulta e os ministérios públicos Federal e de Minas Gerais precisaram intervir no processo.
A audiência, que se estendeu por cinco horas e meia, foi marcada por uma atmosfera de divisão entre os presentes. A mineradora lançou mão de uma tática conhecida para controlar o andamento do evento: colocar seus próprios funcionários, oito deles, para ocupar os espaços de fala, junto com políticos e empresários locais mobilizados como apoiadores.
Conduzida pela Secretaria de Estado de Meio Ambiente (Semad), responsável pelo processo de licenciamento ambiental, a audiência é dividida em 45 minutos para a apresentação do EIA pela consultoria contratada pela mineradora, junto da apresentação do empreendedor. Depois, segue-se o bloco dedicado às manifestações do público, com espaço para 12 blocos de perguntas, permitindo a intervenção de três pessoas em cada bloco, durante três minutos, totalizando 36 intervenções. Por fim, há um bloco de réplicas para aqueles que solicitarem respostas.
Para Ana Clara Leandro, bióloga da Equipe Técnica do Projeto Manuelzão e mestranda em Ecologia, Manejo e Conservação da Vida Silvestre, “a Herculano montou uma estratégia bem clara de impedir a população contrária [ao empreendimento] de falar, articulando com muitos apoiadores e parceiros para que entrassem cedo na fila”.
Essa estratégia de ocupação massiva dos espaços de fala pelo empreendedor tem sido utilizada com frequência nas audiências relacionadas a projetos minerários. O Projeto Manuelzão acompanhou pelo menos três exemplos recentes: a audiência pública em Caeté sobre o Projeto Apolo, da Vale; a audiência em Itabirito sobre o Terminal Ferroviário de Bação, da Bação Logística, e a audiência em Sabará sobre uma planta de beneficiamento de minério da Fleurs Global, que responde na Justiça Federal por lavagem de dinheiro, mineração ilegal na Serra do Curral e diversos outros crimes ambientais.
Na avaliação de Valderes, a mineradora organizou a audiência apenas para apresentar seu projeto, não para receber questionamentos. “Quando eles deixam de respeitar os povos tradicionais da região, quando eles colocam pessoas, suas apoiadoras, para vestir sua camisa ali e fazer fala descaracterizando o território, principalmente outras formas de trabalho, de geração de renda, eles estão agindo de forma truculenta para descaracterizar a resistência e principalmente o que nos possibilitou até hoje estar sobrevivendo no Serro.”
Há uma década, os moradores do município de Serro, situado na região do Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais, têm travado uma batalha contra os interesses de grandes mineradoras: Anglo American, Herculano Mineração, Onix Céu Aberto e Minermang. As comunidades locais têm denunciado uma série de violações de direitos, incluindo ameaças, assédio e possíveis fraudes nos processos de licenciamento ambiental conduzidos pelas empresas.
Essas alegações estão documentadas em um dossiê elaborado por organizações de defesa como o MAM, a Federação N’Golo e o Movimento Pelas Águas. Estas entidades desempenham um papel crucial na proteção dos direitos das comunidades afetadas pela atividade mineradora na região, ressaltando preocupações relacionadas à preservação ambiental, segurança das populações locais e à manutenção dos modos de vida tradicionais, especialmente das comunidades quilombolas.
O Grupo de Temáticas Ambientais (Gesta) da UFMG também publicou uma nota técnica contra o empreendimento. Rachel Oliveira, professora de Sociologia e uma das coordenadoras do Gesta, aponta que o EIA apresentado pela Herculano é reciclado do estudo produzido pela consultoria Arcadis para a Anglo American, entre 2013 e 2014, para um projeto com concepção diferente da atual, que foram atualizadas, respectivamente, entre 2018 e 2021.
“Diversas das condições identificadas entre 2013 e 2014 continuam presentes no local, verificando-se, entretanto, evoluções na legislação e ajustes no projeto que demandam atualização do diagnóstico ambiental e, em especial, de sua respectiva análise de impactos”, lê-se em trecho do documento.
A educadora ambiental Adriane Rodrigues, integrante do Coletivo “Bora Plantar” de Belo Horizonte e Conselheira de Meio Ambiente do município de Baldim, salienta que considerando a audiência pública, como um espaço democrático que busca ouvir as partes interessadas e subsidiar decisões futuras e apontar caminhos, é de fundamental importância que o povo ocupe o seu lugar e tenha voz.
“Por vezes entristece a disputa entre, de um lado, grupos e empresas detentoras de um poder econômico escandaloso versus, de outro, o povo que humildemente luta pelo respeito ao seu território, suas tradições, seus costumes. Deixo a pergunta: será essa uma luta justa?”
Para Valderes Quintino, “é muito importante que a gente venha a entender o papel do povo preto, e principalmente o papel do povo serrano, o povo legítimo do lugar. Então a mineração não tem direito de vir aqui e fazer essa ruptura no nosso processo de vida e na nossa cultura aqui do Serro”.