“Pacote anti-indígena”, PL 490 abre terras indígenas para mineração e acaba com novas demarcaçõesProjeto Manuelzão

“Pacote anti-indígena”, PL 490 abre terras indígenas para mineração e acaba com novas demarcações

31/08/2021

Projeto prevê alterações nas regras de demarcação de terras indígenas e pode afastar 200 mil indígenas de conquistar a posse de 303 terras no país

[Matéria alterada no dia 1 de setembro, para adicionar falas da mestra e atual doutoranda em Antropologia Social pela UFMG, Mariana Vilas Bôas.]

No dia 9 de agosto comemorou-se o Dia Internacional dos Povos Indígenas, data criada pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 1994, visando elaborar uma Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas. Um dos principais objetivos da declaração é garantir a autodeterminação para os povos indígenas do mundo, como expressa no artigo 3º: “Os povos indígenas têm direito à autodeterminação. Em virtude desse direito determinam livremente sua condição política e buscam livremente seu desenvolvimento econômico, social e cultural”.

Ironicamente, no mês declarado como Agosto Indígena, avançam no Congresso Nacional pautas e projetos de lei que tornam as Casas curral de ruralistas, desmatadores e grileiros.

Esse é o tema de uma série de matérias do Projeto Maneulzão que, na terceira e última parte, se debruça sobre o Projeto de Lei 490, o PL do “marco temporal”, que prevê alterações nas regras de demarcação de terras indígenas e pode afastar 200 mil indígenas de conquistar a posse de 303 terras no país. Leia também o primeiro texto da série, sobre o PL da Grilagem e o segundo, sobre o julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) da tese do marco temporal, intimamente ligado à proposta do PL 490.

Manifestação contra o PL 490 ocorrida em junho deste ano. Foto: Conselho Indigenista Missionário

A Câmara e a boiada

Se o julgamento no STF da repercussão geral da tese do marco temporal foi o principal assunto da pauta ambiental na última semana, um projeto de lei de potencial tão ou mais catastrófico quanto o julgamento do Supremo tramita sem a devida atenção na Câmara dos Deputados. Trata-se do PL 490/2007, que, entre outros ataques à autonomia dos povos indígenas no país, pode instituir na Constituição o mesmo dispositivo discutido no STF para restringir a demarcação de terras indígenas: o marco temporal. A tese prevê que só serão consideradas terras indígenas as áreas ocupadas por eles até outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal.

Estipulando tal recorte temporal, o PL 490 ignora que indígenas são os povos originários do país, isto é, já habitavam o território antes da chegada dos portugueses, além das inúmeras expulsões e perseguições com as quais povos indígenas sofreram do início da colonização até os dias de hoje, responsáveis por dizimar comunidades e culturas. Além disso, o projeto de lei impede a ampliação de terras indígenas já demarcadas.

O PL foi escrito em 2007 pelo falecido ex-deputado Homero Pereira (PSD/MT) e articulado pela bancada ruralista da Câmara. Seu objetivo é alterar a Lei nº 6001/72, que dispõe sobre o Estatuto do Índio. O projeto foi arquivado e desarquivado três vezes e ganhou também outros 13 projetos apensados nesta longa jornada para caçar terras indígenas, sobretudo o novo texto substitutivo protocolado pelo relator Arthur Maia (DEM-BA).

Em Brasília, completam-se dois meses do acampamento Luta Pela Vida, que reúne 6 mil indígenas de 170 etnias em intensa mobilização contra o avanço de pautas que tem os povos originários sob a mira. Acompanhe a cobertura e apoie pelas redes da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).

Manifestação do acampamento Luta Pela Vida. Foto: Gabriel Paiva / Fotos Públicas

Ataque à soberania

O PL 490 foi aprovado sem alterações na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) no dia 29 de junho, depois da primeira sessão, uma semana antes, ser interrompida por um conflito entre policiais e manifestantes. Neste dia, um ato pacífico com participação de crianças e idosos foi recebida com gás lacrimogêneo, spray de pimenta e balas de borrachas pelas polícias Legislativa, Militar, Batalhão de Choque e cavalaria. O confronto deixou três feridos e 10 pessoas intoxicadas, entre os feridos estava uma idosa do povo Guarani Kaiowá, do Mato Grosso do Sul, que foi atingida por estilhaços de bomba e chegou a desmaiar durante o ataque.

O projeto usa como referência as 19 condicionantes do julgamento da TI Raposa Serra do Sol e impede a ampliação de terras indígenas já demarcadas, anulando as demarcações já feitas que estiverem em desacordo com os parâmetros da lei proposta, como também as em curso, que voltarão à estaca zero.

Entre outros pontos, possibilita à União a tomada de áreas reservadas aos indígenas quando verificada a “alteração dos traços culturais da comunidade ou por outros fatores ocasionados pelo decurso do tempo”; não reconhece as terras adquiridas por compra, venda ou doação e, em consequência, retira a soberania desses povos de seu território, quando estas áreas “atendem a relevante interesse público da União”. Aqui, entram os recursos hídricos, energéticos, riquezas minerais, o garimpo e todas as atividades em que é garantida a palavra e decisão aos povos donos da terra.

Não para por aí: a proposta abre brechas para a instalação de equipamentos, redes de comunicação, estradas e vias de transporte em terras indígenas. Tal ponto está de acordo com a tentativa de implementar grandes empreendimentos em áreas habitadas por indígenas, como a instalação de uma linha de transmissão de energia na terra indígena Waimiri-Atroari. Além disso, libera a entrada e permanência das Forças Armadas e Polícia Federal, sem a necessidade de consultar as comunidades que ali habitam e permite cultivo de plantas geneticamente modificadas dentro dos territórios.

Manifestação contra o PL 490 ocorrida em junho deste ano. Foto: Conselho Indigenista Missionário

“O marco temporal retira a ressalva do esbulho possessório [tomada injusta de posse], então, as terras teriam que estar ocupadas pelos indígenas no dia 5 de outubro de 1988, sem considerar os históricos de migração forçada e expulsão de terras. A proposta cria ainda uma série de outros entraves à demarcação, como a proibição de demarcação de terra contínua de povos diferentes, caso da Raposa Serra do Sol, por exemplo”, avalia Mariana Vilas Bôas, mestra e atual doutoranda em Antropologia Social pela UFMG.

Tais dispositivos, são frutos de apensados incorporados ao projeto durante suas idas e vindas na Câmara. Mariana também aponta, entre os apensados mais absurdos que foram parar no texto final do PL 490, dois que limitam as TI àquelas ocupadas por indígenas em 1988 e demarcadas antes de 1993 – período em que a Constituição Federal firmava para a finalização de todas as demarcações.

O PL também ameaça os povos que em sua liberdade e autonomia decidiram por viver sem contato constante com outras comunidades. Isso porque permite contato com povos indígenas isolados para “prestar auxílio médico ou para intermediar ação estatal de utilidade pública”. Os parâmetros ambíguos dos usos dessas alterações relegam os indígenas à insegurança jurídica e assentem à boiada que passa cada vez mais pela inconstitucionalidade de leis ordinárias que tentam mudar cláusulas pétreas da Constituição.

Da Funai aos ruralistas

Na avaliação de Mariana, com o PL 490 o poder de demarcar novas terras indígenas cairia no colo daqueles com interesses contrários. “O projeto propõe que as terras indígenas sejam delimitadas por projetos de lei, transferindo o poder da Funai (Fundação Nacional do Índio) para o Legislativo, mas não podemos esquecer que este Legislativo é conservador e as bancadas da bíblia e do boi travariam as demarcações. O processo também seria mais demorado, já que passaria pela Funai primeiro e depois pelo Congresso”, alerta a pesquisadora.

“O processo da Funai é uma pesquisa. Primeiro, os grupos técnicos multidisciplinares (GTs) elaboram o relatório circunstanciado de identificação e delimitação (RCID), com estudos sob orientação de um antropólogo. Isso é publicado no Diário Oficial da União e, então, abre-se um período de dois meses para contestação. Só depois o processo passa pelo Ministro da Justiça. Pode ser um processo de menos de dois anos”, completa Mariana.

A pesquisadora continua, lembrando que os processos de demarcação estão travados desde o governo Dilma e que o parecer 001/2017, também relacionado à tese do marco temporal, vigente por quase três anos no governo Temer, criou insegurança jurídica para as terras já demarcadas. Isso porque transformava em ato administrativo o que, a princípio, não era. No segundo texto da série Agosto Indígena, explicamos o que é o parecer 001/2017 e sua relação com o novo julgamento.

Manifestação do acampamento Luta Pela Vida. Foto: Gabriel Paiva / Fotos Públicas

Durante esse período, os processos que chegavam à Funai ficavam impedidos de prosseguir, com base na data de referência 5 de outubro de 1988. Mais dificuldades foram criadas no governo Bolsonaro, lembra Mariana: “antes de passar pelo ministro, quando divulgado no Diário Oficial da União, a população da terra em análise já era amparada pela Funai como a de terras homologadas. O Governo Federal tirou essa garantia e enquanto a análise está em processo os povos não têm direito a nada”. 

Esse processo foi reforçado pela Instrução Normativa n° 9/2020 da Funai, que limitou a definição de terras indígenas àquelas já homologadas, para efeito de emissão de declaração de limites. Agora, a Declaração de Reconhecimento de Limites será válida somente após o presidente declarar a TI. Então, além de não reconhecer a TI antes da homologação do Ministério da Justiça, o atual processo também não a reconhece antes da assinatura do presidente.

“Ou seja, é como se nada estivesse acontecendo até o momento da assinatura do presidente. Inseriram mais duas novas etapas até que os indígenas possam ter acesso aos seus direitos. A pior situação, nesse sentido, é das populações isoladas, que ficam sujeitas a serem dizimadas pelo garimpo”, lamenta a antropóloga.

“Eu acredito que o PL 490 também tem que passar pelo Supremo porque é inconstitucional. O argumento é que um processo da União não compete à Funai, mas se for assim tudo que fosse atributo da União deveria voltar para o Legislativo. Exemplos disso são o Bolsa Família, Imposto de Renda, estes não voltam para votação no Congresso”, complementa.

Bancada ruralista ataca

O presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL), prometeu à bancada ruralista, em conversa a portas fechadas, que agilizaria a votação do PL 490 no plenário. Lira também afirmou, no dia do confronto entre manifestantes e policiais, que “representantes dos índios invadiram o Congresso Nacional, subiram ao teto das cúpulas e ficaram usando algum tipo de droga. Fumando e dançando”, e que a Casa precisava “ter coragem e debater sobre o tema de exploração da terra indígena”.

Como justificativa, ele argumentou: “Na terra da deputada Joênia [Joênia Wapichana, única deputada indígena presente na sessão da CCJ], o governador me relatava que entre 100 e 200 quilos de ouro saem ilegais dos garimpos de terra indígena por dia. Isso vai continuar acontecendo, se nós não legislarmos, se não cuidarmos”.

Antes disso, em fevereiro de 2020, Jair Bolsonaro propôs um projeto que estabelece “as condições específicas para a realização da pesquisa e da lavra de recursos minerais e hidrocarbonetos e para o aproveitamento de recursos hídricos para geração de energia elétrica em terras indígenas”, o PL 191/2020. A tentativa de explorar terras indígenas por meio de garimpos em “parcerias” não é uma novidade e remonta à Ditadura Militar.

Manifestação contra o PL 490 ocorrida em junho deste ano durante votação da CCJ na Câmara. Foto: Conselho Indigenista Missionário

Fica claro que não será fácil barrar o avanço do PL 490 e de toda a agenda “pró-desenvolvimentista” e etnocida do governo Bolsonaro. Para o professor e geólogo do Instituto de Geociências (IGC) da UFMG, José Antonio Souza de Deus, a transferência de competência de demarcação das terras indígenas da Funai para o Congresso prejudicaria enormemente as sociedades indígenas. “Sabemos o peso que a bancada ruralista, avessa aos interesses indígenas, tem no Congresso Nacional”, assente Souza de Deus.

“A exploração econômica das terras indígenas através do estabelecimento de ‘parcerias’, numa perspectiva ‘desenvolvimentista’, não é consensual no país, nem tem amparo legal ou político. A mineração em terras indígenas, por exemplo, só poderá ocorrer quando uma legislação específica sobre o tema for aprovada, e a qual deve evidentemente estar em consonância com os marcos constitucionais vigentes. Vale ressaltar que os garimpos, hoje implantados em terras indígenas, como se sabe, são atividades ilegais“, complementa o professor.

Integracionismo, discurso oportuno

O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) expressou opinião favorável ao marco temporal. Em várias declarações, o presidente reforçou informações falsas, como de praxe, sobre a rejeição do marco significar que uma área equivalente à região Sul virará terras demarcadas. Afirmou ainda que as demarcações acabariam com o agronegócio e o abastecimento de alimentos, chamou os indígenas articulados no acampamento Luta Pela Vida de “massa de manobra” e “coitados”, sugeriu, por fim, que a decisão do STF não seria respeitada e que ele já tinha duas opções ‘na manga’, mas que ainda não revelaria a escolhida.

Dois dos argumentos mais comuns para defender o arrendamento de terras indígenas e a exploração minerária e garimpeira em “parcerias” são o integracionismo e o entendimento turvo sobre o que são “terras produtivas”. Sobre isso, Mariana é categórica: “embora eu ache muito complicado esse condicionamento do direito indígena à terra a um tipo de produtividade capitalista, eles também têm esse tipo de produção fora desse projeto engessado de monocultura. Convém lembrar que a maior parte das terras indígenas na Amazônia não são agricultáveis, na verdade, o que está em jogo é retirar essa terra para especulação, criar boi, plantar soja e minerar”. 

A pesquisadora traz o exemplo das Feiras de Agricultura Familiar realizadas nas quatro regiões que compreendem a TI Raposa Serra do Sol, Serras, Surumu, Baixo Cotingo e Raposa, após uma década de demarcação. Como também, os Tupinambá de Olivença, no sul da Bahia, perto de Ilhéus, que a antropóloga conheceu de perto durante seu mestrado. Os tupinambás transformaram fazendas de cacau abandonadas em roças orgânicas de banana, mandioca, cupuaçu, abacaxi, além de abastecer a comunidade e empregar funcionários nestas fazendas antes improdutivas.

As Feiras Regionais de Produção Sustentável eram comuns no mês de setembro nas etnoregiões da Raposa e Surumu na TI Raposa Serra do Sol. Foto: Conselho Indígena de Roraima.

Sobre o integracionismo, a pesquisadora analisa: “a ideia que se tinha na instituição do Estatuto do Índio é que inevitavelmente os indígenas se ‘integrariam’ à população brasileira. Nenhuma legislação chegou a tirar o direito à terra do indígena integrado, mas com o próprio processo de integração aquela terra seria esvaziada. Acontece que nunca conseguiram alterar a legislação de modo a condicionar o direito ao território à indianidade. O integracionismo é um discurso oportuno para os apoiadores e para o próprio Bolsonaro, que só entendem a indianidade como índios de cocar e que não falam português. Esse discurso é tão incorporado ao senso comum que quando acionado gera concordância da população. É o ‘índio de Hilux’, ou a associação direta com a pobreza, e se o indígena tem bens, internet, ou celular, ele ‘não precisa’ da terra”.

Segundo o Instituto Socioambiental, 13,8% do Brasil são terras indígenas demarcadas ou já verificadas no Diário Oficial da União. Enquanto isso, 22% do território nacional é ocupado com pastagem e outros 8% com agricultura, conforme informações do projeto MapBiomas. 98% das terras indígenas estão na Amazônia Legal com 62% dos povos habitando essas terras, os outros 38% estão nos 2% das TIs fora da Amazônia. Considerando a extensão do território, essas TIs fora da Amazônia Legal correspondem a somente 0,6% do Brasil. Em contraste, 20% do país pertence a 1% de propriedades privadas, cerca de 51,2 mil fazendeiros.

O relatório Povos indígenas e comunidades tradicionais e a governança florestal, produzido pela ONU, revelou também que 45% da Amazônia Internacional preservada está em territórios indígenas. O documento aponta que as taxas de desmatamento  são significativamente mais baixas em áreas indígenas e de comunidades tradicionais onde os governos reconhecem formalmente os direitos territoriais coletivos. No Brasil, equivale a um número 2,5 vezes menor.

O STF retoma amanhã, 1, o julgamento do uso da tese do marco temporal pelo TRF-4 de Santa Catarina para justificar a reintegração de posse movida contra os Xokleng na TI Ibirama-La Klãnõ. Edson Fachin foi contra a tese na primeira parte do julgamento, ocorrida em maio de 2020, quando suspendeu seus efeitos e qualquer tipo de reintegração até o fim do julgamento. Na última sessão sobre o caso, na quinta-feira passada, ele reafirmou seu voto pelo direito ao pluralismo assentado pelo artigo 1º da Constituição Federal. A Procuradoria Geral da República também se manifestou contra o marco.

Na Câmara dos Deputados, ainda não há previsão para que o PL 490 volte ao plenário.

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