23/03/2022
Professor da Faculdade de Medicina da UFMG e fundador do Manuelzão está sendo processado pela entidade por críticas ao que chamou de “hidronegócio”
“Apolo é nascente”, “Apolo é semente”. Essas foram as frases mais repetidas por ambientalistas, parlamentares e companheiros de luta e de vida de Apolo Heringer Lisboa, professor da Faculdade de Medicina da UFMG e fundador do Projeto Manuelzão, no ato de desagravo realizado nesta segunda-feira, 21, na sede do Sindicato dos Jornalistas Profissionais de Minas Gerais (SJPMG), em Belo Horizonte. Apolo está sendo processado judicialmente pela Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais, a Fiemg, por opiniões críticas à atuação da entidade empresarial nos comitês de bacia hidrográfica, que classificou como “hidronegócio”.
A tentativa de silenciamento do célebre ambientalista, reconhecido por sua longa trajetória como médico sanitarista e incansável defensor das águas, gerou uma onda de indignação e solidariedade e forte estardalhaço em resposta. Cerca de 100 pessoas se reuniram em apoio a Apolo; entre elas estavam vereadoras, deputadas estaduais e representantes de partidos políticos diversos, além de várias gerações de lideranças ambientalistas da região, declaradamente inspiradas por seu legado de ideias e luta.
Das mãos da deputada estadual Beatriz Cerqueira (PT), Apolo recebeu uma placa de apoio e outra de congratulação da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), “por sua história de defesa da vida e da preservação dos ecossistemas brasileiros e do uso equilibrado e responsável dos recursos naturais”. Na Câmara Municipal de Belo Horizonte, uma moção de apoio a Apolo e repúdio à Fiemg foi aprovada pela Casa após requerimento da vereadora Bella Gonçalves (Psol).
Por quase 20 minutos, o personagem do dia discursou num arco que cobriu da formação do universo à destruição da Terra pelo homem, passando pela motivação por trás da ação movida pela Fiemg contra si.
“No século XVI, por volta de 1500, o Brasil inspirava todo o mundo científico na Europa devido à sua maravilha frondosa… era o novo mundo, das florestas, dos indígenas, da água limpa. Era tudo saudável, a carta de Pero Vaz Caminha é o atestado disso. E nós estamos destruindo esse país. Estamos destruindo os rios, porque não há rio vivo em terra morta. Se você quer salvar os rios, você deve tratar bem da bacia hidrográfica. Antigamente os indígenas tinham a noção de vale: Vale do Jequitinhonha, Vale do Rio Doce, do Rio das Velhas. Hoje, se segue uma divisão territorial que tem a ver com a capitania hereditária, que foi cortar o Brasil em faixas, dividindo tribos, rios, montanhas e que criou uma incoerência territorial sobre a qual nenhum planejamento dá certo”, iniciou sua fala.
“Tudo que acontece na bacia reflete em suas águas, por isso se diz que o espírito habita as águas, e que o espelho d’água mostra nossa cara. Você conhece a civilização de uma região quando olha pro rio e analisa aquela água como se fosse o sangue da terra. A água revela nossa mentalidade. […] A maioria do povo gosta da natureza! E onde estão os rios? Por que não querem que a gente olhe para os rios? Por que não querem que a gente pense e olhe pra água? Por que eles querem esconder esse olhar?”, questionou. “Foi isso que levou a esse processo contra mim”.
Apolo lembrou que não é o primeiro a ser perseguido pela Fiemg. A entidade moveu uma ação judicial contra técnicos do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, o ICMBio, por não licenciarem uma fábrica da Heineken, numa região de cavernas e sítios arqueológicos.
“Esse ato não deve ser visto isoladamente, eu juntaria aqui o nome dos funcionários do ICMBio, que vetaram o uso da água na região de Pedro Leopoldo onde encontraram os restos mortais de preguiças gigantes, de animais enormes que habitavam a região da bacia do Rio das Velhas e o crânio da Luzia, um dos restos mortais humanos mais antigos da América. Queriam tirar água numa quantidade que a chuva não consegue repor. Seria o caos, a diminuição de água pra própria população de Pedro Leopoldo […]. Haviam outros lugares para instalar essa fábrica, então por que lá? Isso é uma provocação”.
Liderada por Severino Iabá, a bateria do Boi Rosado Ambiental puxava uma marchinha de quatro estrofes – “Guardião das serras e das águas / sua voz ninguém pode calar…” -, enquanto os manifestantes chegavam à Casa do Jornalista, sede do sindicato dos profissionais da área. Seguiram-se numerosos discursos de ambientalistas, parlamentares, amigos de variadas épocas; os mais antigos, dos tempos de militância contra a ditadura militar, que forçou Apolo a exilar-se no Chile, Argentina e Argélia, de onde foi para a França. Ele retornou ao Brasil apenas na década de 1980 e participou da fundação do Partido dos Trabalhadores, com o qual romperia anos depois.
A presidente do SJPMG, Alessandra Mello, primeira a falar, ressaltou a escalada do cerceamento à liberdade de expressão por via judicial no país e a relação entre liberdade de expressão e liberdade de imprensa. Segundo dados de 2021 da Federação Nacional dos Jornalistas, a Fenaj, dos 155 casos de censura registrados no ano, 15 foram por meio de ação judicial. “A batalha pela liberdade de expressão é coletiva, solidária e tem que ser travada por todo mundo, não só nós jornalistas, vocês ambientalistas, mas pela sociedade em geral, é uma tarefa nossa”, convocou.
Marcus Vinicius Polignano, companheiro de Apolo como professor da Faculdade de Medicina da UFMG e coordenador do Projeto Manuelzão, frisou que a Fiemg, representante das mineradoras no estado, moveu uma ação de inconstitucionalidade contra a Lei Mar de Lama Nunca Mais, que instituiu a Política Estadual de Segurança de Barragens em Minas Gerais. A lei proibiu a construção de novas barragens de rejeitos a montante e estabeleceu 25 de fevereiro de 2022 como prazo para a descaracterização de barragens do tipo. Esse prazo, que a Fiemg tentou estender às vésperas do fim, se encerrou em com mais de 40 estruturas não descaracterizadas.
“Estamos aqui hoje porque acreditamos na liberdade, acreditamos que a ética tem que ser um compromisso de sociedade, que o Estado tem que ter liberdade democrática. Estamos aqui hoje pra defender quem sempre foi honesto, coerente, quem sempre defendeu princípios e sociedade. Apolo está sendo processado pela Fiemg porque fez declarações do que ele acredita e legitimamente o fez. a mesma Fiemg, na mesma época, entrou na Justiça para que as mineradoras não cumprissem prazos. Aí eu pergunto: onde está a ética? onde está a coerência? qual o compromisso disso com a sociedade? qual o compromisso com o futuro? qual o compromisso com o que a gente quer para nós e para as próximas gerações?”, indagou o coordenador do Manuelzão.
O movimento da Fiemg contra Apolo, por fim, serviu para engrandecer ainda mais seu legado. A vereadora mais votada de Belo Horizonte na última eleição, Duda Salabert (PDT), sintetizou muitas das falas proferidas ao longo do dia: “esse rio que chega em mim, a nascente está em você”. “Se estou hoje no cargo de vereadora e discutindo pautas socioambientais é porque tinha uma nascente e essa nascente está mais forte do que nunca”, exclamou em agradecimento à influência exercida pelo mentor do Manuelzão em suas visões.
Além dos presentes, manifestaram seu apoio, em nota, 160 entidades e movimentos ambientalistas e da sociedade civil de todo o país e mais de 15 mil cidadãos aderiram a um abaixo-assinado on-line. Figuras públicas como a ex-ministra do Meio Ambiente, ex-presidenciável e líder da Rede Sustentabilidade, Marina Silva, e o líder e intelectual indígena Ailton Krenak também se solidarizaram publicamente.
Aos 79 anos, Apolo sente-se feliz e com a saúde em dia. Agradeceu ao fim aos presentes – do vizinho recém-conhecido à mulher e a filha – e reafirmou que não recuará : “Vou continuar lutando, não tive nenhum mandato político até hoje e isso não foi motivo para eu deixar de lutar”, disse em resposta amigável aos numerosos pedidos para que se lançasse como deputado estadual por Minas Gerais e arrematou: “e quando eu não estiver mais aqui fisicamente, estarei lá no céu, como uma estrelinha piscando para vocês”.