"Porta giratória", Tamisa e a disputa pela Serra do Curral - Projeto ManuelzãoProjeto Manuelzão

“Porta giratória”, Tamisa e a disputa pela Serra do Curral

07/07/2022

Reportagem da Carta Capital denuncia migração de servidores de órgãos ambientais do estado para consultorias e escritórios de advocacia contratados por mineradoras

A Serra do Curral é um dos mais distintos marcos geográficos da Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), abriga centenas de espécies de fauna e flora de Cerrado e Mata Atlântica, liga duas das maiores bacias hidrográficas do estado – as dos rios das Velhas e Paraopeba e emoldura a capital. Sua importância cultural, histórica e ambiental, um patrimônio imensurável, não impede que ela seja alvo de mineradoras, favorecidas pelo governo estadual

Há pouco mais de dois meses, o projeto de mineração da Tamisa que pode impactar o abastecimento hídrico de 2,5 milhões de pessoas, desmoronar o ponto mais alto da Serra do Curral e trazer impactos vastos e irreversíveis para toda a RMBH foi aprovado pelo Conselho Estadual de Política Ambiental (Copam). À época, a Prefeitura de Belo Horizonte ajuizou uma ação contra a decisão, que ainda não foi julgada – nesta quarta-feira, 6, o executivo municipal protocolou mais um pedido contra a licença concedida à Tamisa pelo governo de Minas Gerais.

As disputas envolvendo a serra, com o tombamento, de um lado, e a mineração, do outro, parecem não ter data para acabar. Neste momento – a cerca de três meses das eleições – a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 67/2021 do tombamento estadual da serra está pronta para ser votada em 1º turno no Plenário da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG). Favorável à mineração, tendo protelado o tombamento e favorecido a Tamisa, o governador Romeu Zema (Novo) hoje se diz “nem contra nem a favor”. Todos os representantes do governo no Copam, contudo, votaram a favor do projeto.

Em 15 de junho, o estado publicou um decreto que reconhece “relevante interesse cultural” da Serra do Curral – apenas uma mudança de tom do governo, que após forte pressão popular reconhece publicamente a importância da serra, mas não garante sua proteção integral nem substitui o necessário tombamento.

A tentativa de exploração da Serra do Curral representa, para além da “simples” submissão de Minas Gerais à atividade que dá seu nome, a teia de relações entre o governo estadual de Zema, mineradoras e consultorias. Uma reportagem da Carta Capital publicada nesta terça-feira, 5, denuncia, além do aparelhamento dos conselhos envolvidos no processo de licenciamento de projetos de mineração, a “porta giratória” no estado: a migração de servidores do alto escalão do Estado para consultorias e escritórios de advocacia contratados por mineradoras – incluindo a empresa que advoga pela Tamisa.

 

Do outro lado do balcão

Leonardo Tadeu Dallariva Rocha, ex-superintendente regional de Meio Ambiente, fiscalizou e atuou em projetos da Tamisa, incluindo a primeira versão da exploração na Serra do Curral. Agora, ele é sócio do escritório de advocacia Santana de Vasconcellos, que cuidou desse mesmo licenciamento, além de atender a Vale no caso da tragédia-crime de Brumadinho.

Leonardo foi chefe de gabinete de Bernardo Santana, um dos sócios do escritório, quando Santana era secretário estadual de Desenvolvimento Social no governo de Fernando Pimentel (PT). José Santana, pai de Bernardo, é o presidente do Partido Liberal (PL), sigla de Jair Bolsonaro, em Minas Gerais. Seu irmão, Gustavo, é deputado estadual e defendeu a Tamisa em audiência na Comissão de Meio Ambiente da ALMG.

A Alger Consultoria Socioambiental é um acrônimo de dois ex-secretários de Meio Ambiente mineiros, Alceu Torres Marques e Germano Gomes Vieira. Antonio Malard, ex-presidente do Instituto Estadual de Florestas (IEF), ex-superintendente e ex-secretário-adjunto da Semad, se tornou sócio da empresa em janeiro deste ano – ele também deu parecer favorável ao projeto da Tamisa na Serra do Curral.

A reportagem também fala de outro movimento: servidores que deixam o Sistema Estadual de Meio Ambiente (Sisema), que abriga órgãos como a Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad), a Fundação Estadual do Meio Ambiente (Feam) e o IEF, para constituir suas próprias empresas. Hildebrando Canabrava Neto foi secretário-executivo da Semad até outubro de 2020 e, em 2021, tornou-se sócio de duas mineradoras, Brava e Verdecal Mineração, além de possuir duas consultorias na área ambiental.

A atual secretária de Meio Ambiente e Desenvolvimento, Marília Carvalho de Melo, estava presidindo o Instituto de Águas de Minas Gerais (Igam) quando a empresa de consultoria ambiental Crono Engenharia, registrada em nome de sua mãe e de seu padrasto, foi contratada pela autarquia por meio dos consórcios Ecoplan/Lume e Ecoplan/Skill. Ela deixou o Igam em setembro de 2020 para assumir a Semad.

Responsável pelo relatório do projeto da Tamisa na Serra do Curral, Carlos Eduardo Orsini, representante da Sociedade Mineira de Engenheiros, em nenhum momento se sentiu constrangido de participar da votação, mesmo sendo administrador da Scorpio Mineração. Ele também é sócio majoritário da YKS Empreendimentos e Participações Ltda., empresa de consultoria ambiental. A Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais (Fiemg), parceira da Vale e, nos últimos tempos, inimiga dos ambientalistas, também participa da Câmara de Atividades Minerárias (CMI) do Copam.

O Ministério Público e a Polícia Ambiental tinham assentos no Copam até 2016, quando o conselho foi reformulado. Sem a presença desses órgãos, as forças se desequilibraram e as entidades pró-mineração “vão continuar passando o trator”, como definiu Felipe Gomes, ex-servidor da Semad e da Feam, à Carta Capital. Ele também ressalta que “além do conflito de interesses, esses servidores tiveram acesso a informações privilegiadas”. 

Linha do tempo

Em março de 2021, listamos os graves e irreversíveis danos que o Complexo Minerário Serra do Taquaril (CMST), da Tamisa, então na fase de licenciamento ambiental, traria à Serra do Curral e à RMBH caso aprovado. À época, o tombamento estadual da serra, única forma de garantir sua proteção integral, já corria no Conselho Estadual de Patrimônio (Conep), processo que foi continuamente protelado por manobras do governo Zema, segundo denúncias de conselheiros.

O Conep é ligado ao Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais, o Iepha, cujo ex-presidente, Felipe Cardoso Vale Pires, foi exonerado no dia 14 de maio deste ano. Ele havia expedido um ofício ao Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) em março declarando que o projeto de mineração da Tamisa na Serra do Curral não havia sido analisado pelo Iepha. A nova presidente do órgão, Marília Palhares Machado, é prima do diretor executivo e sócio da mineradora.

Deputados da ALMG começaram a se movimentar para abrir uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para apurar o processo de licenciamento do projeto da Tamisa pouco depois. A CPI ainda não foi aberta, por falta de assinaturas. Além disso, foi protocolada na casa a PEC 67/2021, uma alternativa ao processo de tombamento estadual da Serra do Curral do Iepha. A proposta foi aprovada pela Comissão Especial instituída para analisá-la no dia 21 de junho e está pronta para ir a Plenário – precisa ser aprovada em dois turnos e então segue para a sanção do governador.

A exoneração de Felipe Pires não foi a primeira vez em que um presidente do Iepha é afastado em um momento crucial para a defesa da Serra do Curral. Michele Arroyo, presidente do órgão desde 2015, foi afastada de ambos os cargos em 21 de abril de 2021, durante o processo de votação do dossiê que fundamenta o tombamento da serra – uma das primeiras movimentações do governo Zema no conselho, que desde então não se reuniu para analisar o documento.

O projeto da Tamisa foi aprovado na madrugada do dia 30 de maio pela Câmara de Atividades Minerárias (CMI) do Copam. Foram oito votos a quatro, numa reunião de cerca de 18 horas que contou com a participação e protestos de mais de 280 pessoas que se inscreveram mas não tiveram a oportunidade de se pronunciar. Além de outras irregularidades, o Iepha não foi consultado.

Desde o início da disputa com a Tamisa, órgãos públicos, especialistas e movimentos se manifestam fortemente contra a mineração na Serra do Curral, a favor do seu tombamento. A pauta ganhou projeção nacional também com um manifesto com mais de 500 artistas em defesa da Serra, como Caetano Veloso, Chico Buarque, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Emicida, Wagner Moura e Andréa Beltrão.

Mineração em área tombada da Serra

A Tamisa não é a única ameaça à Serra do Curral, que já é explorada pela mineração. A alemã Gute Sicht minera na serra com base em um Termo de Ajuste de Conduta (TAC) firmado com o governo do estado. Desde 2020, a mineradora explora uma área da Serra do Curral na divisa entre Belo Horizonte, onde a serra é tombada, e Sabará, sem ter passado pelo processo de licenciamento ambiental e sem qualquer consulta à Prefeitura de Belo Horizonte (PBH). Suas atividades são permitidas apenas pelo TAC, que, como o nome indica, é um acordo firmado com uma empresa que violou determinado direito coletivo.

A PBH interditou a mina Boa Vista, da Gute Sicht, no dia 25 de maio, e requer a anulação do TAC, e assim, a paralisação das atividades da mineradora. A prefeitura também solicita a condenação do Estado e da Gute Sicht para que indenizem o município em R$20 milhões devido aos danos coletivos e ao meio ambiente causados pela atividade na região.

A empresa foi multada pela fiscalização da Superintendência Regional de Meio Ambiente (Supram) Central no valor de R$107 mil. O Auto de Infração (AI) 296.500/2022 da Supram foi indexado ao sistema da Semad no dia 12 de junho, e além da multa, previa o embargo das atividades da mineradora. 

Apesar das infrações serem passíveis de rescisão do TAC firmado entre a mineradora e o governo de Minas Gerais, a Procuradoria-Geral do Estado determinou que as atividades da Gute Sicht são de “utilidade pública” e o AI, que implicaria na rescisão do TAC e a suspensão das atividades da Gute, foi desconsiderado. Com isso, a Gute segue dinamitando rochas e extraindo cerca de 40 caminhões de minério por dia, conforme denunciado pela deputada estadual Beatriz Cerqueira (PT) e pelo jornal O Tempo.

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